As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1873-01/02) - 1

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RAMALHO ORTIGÃO--EÇA DE QUEIROZ
AS FARPAS
CHRONICA MENSAL DA POLITICA DAS LETRAS E DOS COSTUMES
2.º ANNO
Janeiro a Fevereiro de 1873


Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder,
da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das
sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da
politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande
universo, e da adoração de mim mesmo.
P.J. PROUDHON


SUMMARIO
As idéas no parlamento e a immobilidade egypcia. O discurso da corôa. Os
partidos. As fórmas do governo. Governo livre e governo despotico.
Republica ou monarchia? A nossa questão, e o nosso voto. Qual é o
governo que nos espera. As maiorias e as opposições. Perfil da sociedade
portugueza. O descontentamento geral. A nossa intelligencia, a nossa
virtude, o nosso direito á liberdade--Reforma do exercito e dos
estribos--As conspirações, as revoltas e as opiniões do parlamento--O
enterro da senhora duqueza de Bragança.--Um conselho á força
armada.--Prova-se que a camara dos deputados não tem amolecimento
cerebral. Uma figura de rhetorica. O ex-rei Amadeu e varios outros
personagens historicos inclusivamente o sr. Arrobas, com uma palavra
sobre as botas de s.ex.ª--Resposta áquelle que jurou assassinar-me.--Os
srs bispos do ultramar--O redactor do _Espectro_ e o ministro do reino.
A inviolabilidade domestica. A calumnia. A publicidade--Joseph Prudhome
e Pickuick.
Toda a animação parlamentar, toda a vida representativa no mez corrente
se resumiu no seguinte: a discussão da resposta ao discurso da corôa.
Esta discussão partindo de um ponto--a approvação do projecto--, para
findar exactamente no mesmo ponto de que partiu--a approvação do dito
projecto--, é verdadeiramente a imagem constitucional da kneph dos
egypcios, a velha serpente com o rabo na bocca, o symbolo desolador da
immobilidade oriental.
Tanta palavra dispendida, tanto tempo empregado, tanto dinheiro perdido,
tantos suores, tantos gritos, tantos copos de agua desbaratados para se
assentar nos termos em que o rei tem de cumprimentar o paiz e em quo o
paiz tem de responder aos cumprimentos do rei!
Como se, não havendo principios nenhuns de politica interna que
affirmar, não havendo nenhuns factos de politica externa que expender, o
que um rei tem que dizer ao povo e o que o povo tem que responder ao rei
podesse, sem o mais criminoso abuso das prolixidades rhetoricas,
alargar-se d'estes termos.
_Discurso da corôa_: «Meus senhores, Deus lhes dê muitos bons dias!»
_Resposta ao discurso da corôa_: «Senhor! Deus lhe dê os mesmos!»
Tudo mais é emphatico, é ôco, é ridiculo--e é immoral.
* * * * *
Ha um mez inteiro que os srs. deputados, sob o pretexto de accordarem na
collocação de um adverbio ou no significado de um adjectivo para a
confecção de um periodo banal, se discutem a si proprios; chamam-se
reciprocamente _desordeiros, calumniadores e ineptos_; e documentam e
provam entre uns e outros, de partido para partido, que são
effectivamente _desordeiros, conspiradores, calumniadores e ineptos_.
As galerias enchem-se. Enchem-se de uma multidão desoccupada e ociosa,
que não vae á camara levada pelas curiosidades scientificas, nem pelos
interesses patrioticos. Vae apenas disfructar os contendores, rir-se
d'elles, apupal-os no fundo da sua consciencia, e--o que é peior que
tudo--preverter-se e desmoralisar-se no contacto da corrupção. Vão vêr a
maledicencia dilacerar as reputações, como as féras nos circos romanos
dilaceravam os martyres, e aprender no exemplo dos novos gladiadores do
decoro a desprezar a honra diante do insulto, assim como nas antigas
luctas do gladio se aprendia a desprezar a vida diante da peleja.
Durante este mez as galerias do parlamento estiveram sempre cheias,
segundo asseveram os jornaes. Encheram-as empregados publicos que
desertaram as suas repartições, litteratos ambiciosos que abandonaram os
seus livros, burguezes enfastiados que deixaram o seu trabalho,
operarios em _grève_ que foram aprender a discursar nos seus comicios,
pretendentes de empregos publicos, que foram examinar os pôdres por
onde poderão romper os seus empenhos. E toda esta multidão perigosa, que
precisaria de ouvir palavras de moralisação, de trabalho, de dignidade,
assiste durante um mez inteiro aos exercicios de uma oratoria rasteira,
sem elevação moral, sem correcção artistica, cheia de arrebatamentos
estudados ao espelho, de improvisos ensaiados em familia, de coleras
sobreposse, de indignações requentadas, de despeitos fingidos. Depois da
lucta os athletas, com os colleirinhos abatidos e sujos pelas
distillações do suor e das tinturas indeleveis, apertam-se entre si as
suas pobres mãos inoffensivas e inuteis, e fazem-se gestos amigaveis,
surriadas de bom humôr, piscam-se o olho, deitam-se a lingua de fóra,
riem todos, e saem juntos de braço dado, amigos e inimigos, como velhos
rabulas amaveis e cynicos, que vão comer juntos o jantar que ganharam
descompondo-se em serviço da parte, que ficou na cadeia.
E eis ahi no mais alto das instituições a escola publica em que o povo
tem de aprender a ser digno e honrado!
* * * * *
Tome-se sobre o discurso de cada deputado a somma das affirmativas e
negativas que fizeram em todos os principios geraes da politica e da
administração: vêr-se-ha pela exposição integral das verbas
correspondentes ás opiniões de cada partido e de cada individuo, que
todos affirmaram e que todos negaram exactamente as mesmas coisas.
Toda a questão é pessoal. Á porta os correios de secretaria, com os seus
cavallos á rédea, esperam tranquillos. A divergencia versa sobre os
nomes dos individuos atraz dos quaes esses correios teem de trotar d'ali
para o Terreiro do Paço e do Terreiro do Paço para a Ajuda. Periclitam
constantemente os abusos. É forçoso deslocal-os. Trata-se de saber de
quem é a vez de os passear com uma pasta encarnada dentro de um _coupé_
da Companhia.
Quantos insultos, quantos improperios, quantos copos de agua, quantos
erros de grammatica se não poderiam poupar ao pudor do paiz, dando
definitivamente á companhia das carroagens este simples recado:
«Os partidos são cinco--regeneradores, historicos, reformistas,
avilistas e constituintes: que os _coupés_ do ministerio parem
revesadamente de tres em tres mezes ás portas de cada um d'esses
senhores, e quando o poder moderador quizer saber quem são os individuos
que hão de levar-lhe o despacho em cada trimestre, que o poder moderador
se digne de o mandar saber á inscripção patente na cocheira respectiva.»
Os srs. correios de secretaria seguiriam as carroagens ministeriaes, os
srs. deputados votariam calados.
Um philosopho americano conta que nas ilhas Sandwich ha a superstição do
que a força de um inimigo morto passa para aquelle que o venceu; em
Portugal ha egual superstição com as successões do governo: a camara é
sempre da opinião do que está no poder. Portanto, com a lei que
propomos, acabariam as dissoluções e cessariam as discordias.
Pela primeira vez ouvimos n'esta legislatura lançar-se ao debate e
discutir-se a palavra Republica. Vimos que a fórma do governo
republicano tem no seio do parlamento defensores e adversarios, havendo
todavia um ponto em que uns e outros se acham inteiramente concordes, e
é: que o povo portuguez não está por emquanto nem bastante educado nem
bastante instruido para poder sem grandes perigos acceitar a republica.

Pela nossa parte não somos monarchicos nem somos republicanos. A fórma
constituitiva do poder não nos importa. O problema politico
interessa-nos pouco. E n'este ponto achamo-nos inteiramente com o nosso
tempo e com a sociedade actual. A questão grave que hoje preoccupa os
povos não é de como se ha de distribuir o poder, é de como se ha de
distribuir a riqueza. As classes que mais se agitam, as que por toda a
parte amedrontam os manutensores da ordem, as que hão de revolver e
fixar os destinos das sociedades futuras, não querem empolgar os
symbolos do governo, querem simplesmente adquirir os instrumentos do
trabalho; querem a terra e querem o capital. O problema moderno é o
problema economico. Os reis estão sendo postos ou depostos por toda a
parte sem perturbação e sem abalo. Porque? Porque ninguem se interessa
em que elles se deixem ficar ou em que elles se vão embora. Voltaire
defendia as monarchias com a razão de que preferia servir um leão que
tivesse nascido mais forte que elle, a ser devorado por cem ratos da sua
especie. Isto era no seculo XVIII, no tempo de Luiz XIV e de Frederico,
em que nas monarchias havia o leão e não havia os ratos. No
constitucionalismo moderno temos apenas os ratos que nos devoram. O leão
é uma pacifica féra embalsamada, inoffensivo ornato de _ètagére_, que os
ratos trazem comsigo debaixo do braço e que lhes serve apenas de
pretexto para elles adoptarem esta fórma engenhosa e delicada de nos
declararem que lhes appetece roer:--«Meus senhores, o leão pede
viveres.»
Se a religião da liberdade, da egualdade e da fraternidade nos não
obrigasse a considerar as sociedades e a respeital-as como
fundamentalmente autonomas, isto é, independentes de todo o dominio, o
governo que nós considerariamos o mais perfeito seria o que mais se
aproximasse d'aquelle que até hoje tem dirigido os destinos da egreja
catholica. O poder supremo nas mãos de um papa infallivel, arbitro
absoluto da verdade e da justiça, que não póde enganar nem ser enganado;
o dominio e o governo firmado na obediencia passiva de todos os subditos
e na inclinação dada interiormente ás vontades, abrangendo toda a
esphera da iniciativa humana desde os actos até os pensamentos; tendo
por policia a inquisição, o mais completo e o mais perfeito de todos
quantos tribunaes se teem creado para cohibir as infracções da lei,
tribunal que ataca o mal no seu germen, dentro da consciencia, e não
depois de já declarado em perturbações effectivas, de modo que nem no
fundo mais recondito da alma é possivel um esconderijo para a anarchia!
Tal seria o bello ideal do governo, considerado como salva-guarda do
socego e da ordem.
Hoje porém:
Como os governos não podem já ser considerados debaixo d'esse ponto de
vista auctoritario e ordeiro dos partidos conservadores;
Como todas as sociedades tendem conjunctamente para se governarem a si
mesmas;
Como em toda a Europa, excepto na Russia, as monarchias absolutas se
transformaram em monarchias parlamentares, retomando assim os governados
a maior parte dos poderes delegados nos governantes;
Como dentro em pouco tempo, precisamente, _fatalmente_, todos os povos
impedirão que subsistam outros poderes que não sejam aquelles que por
via da eleição representem a vontade popular:
Segue-se que a differença essencial das fórmas actuaes de governo não
póde, como ainda ultimamente disse em um notavel livro o sr. Passy,
considerar-se senão como unicamente dependente da maior ou menor parte
de poder que ellas asseguram ao povo.
Vejamos pois agora qual é a differença que existe entre uma republica e
uma monarchia parlamentar.
A republica é o governo do povo pelos seus mandatarios eleitos, tendo
por chefe do poder executivo--um presidente eleito.
A monarchia parlamentar, como ella existe em Portugal, é o governo do
povo pelos seus mandatarios eleitos, tendo por chefe do poder
executivo--um rei hereditario.
O sr. Duvergier de Hauranne, em um estudo consagrado á apreciação da
republica conservadora que actualmente existe em França, diz que uma
monarchia constitucional, com um rei que não governa, com ministros
responsaveis e uma camara electiva sujeita sempre aos riscos de uma
dissolução, é um dos regimes parlamentares que mais garantias oferecem á
liberdade. Todavia, observa ainda o publicista a quem nos referimos,
para o estabelecimento da monarchia é preciso a dynastia, isto é: a
tradição. Quando a dynastia cae, desapparecendo ou cortando-se a
tradição como em França e em Hespanha, nada mais perigoso do que
suscitar ruins ambições, chamando um principe para cabide de uma corôa.
N'este caso o unico systema que não offerece gravíssimos perigos e
grandes complicações intestinas e internacionaes é a republica. Ter a
monarchia com todos os foros democraticos e derribal-a por um escrupulo
de nome é grande imprudencia. Não ter a monarchia e tentar
reconstituil-a sobre a cabeça do primeiro forasteiro é falta de valor e
de juizo para governar.
Nos livros mais recentes consagrados aos estudos politicos e á indagação
das razões porque os povos perdem, conquistam ou conservam a liberdade,
nas obras modernas de Lewis, Brougham, Lorenz-Sten, Glinka, Mill,
Bagebot, Prévost-Paradol, não se acha differença entre republica e
monarchia representativa.
A eleição ou a heriditariedade do chefe do poder executivo não alteram
de nenhum modo as condições da compatibilidade da liberdade com a
politica. A fórma do governo na egreja--o mais despotico governo de
quantos se possam imaginar--é a fórma republicana. O papa é um
presidente eleito.
O poder popular não periga na coexistencia dos reis. Era Roma o imperio
funda-se esmagando os patricios. Na moderna Europa as realezas
affirmam-se despedaçando as resistencias dos senhores feudaes. Os
soberanos procuram sempre na alliança do povo o appoio do mais forte.
Perante as hostilidades do clero e da nobreza Napoleão I dizia
ameaçadoramente: «Se lhes solto o povo estracinho-os n'um abrir e fechar
d'olhos.» Napoleão III contava nas suas confissões feitas no desterro
que fôra sempre socialista. A _Internacional_ tem origem em uma
expedição de operarios mandados a Londres á custa do segundo imperio
para estudarem na exposição internacional de 1862 os melhoramentos que a
França poderia introduzir na organisação do trabalho.
A republica pela sua parte tem sobre a monarchia uma poderosa
vantagem--a qual ordinariamente se lhe attribue como o seu maior
defeito:--a republica suscita as grandes ambições, que o
constitucionalismo restringe e até certo ponto avilta. Ora é exactamente
nas grandes ambições que se geram as grandes capacidades.
Isto porém são caracteristicos especiaes que, reunidos a muitos outros
que seria facil adduzir, podem em dadas circumstancias determinar a
escolha em favor do regime monarchico ou do regime republicano. Com
relação á liberdade os dois systemas não soffrem evidentemente
distincção: um e outro affirmam um governo livre.
A differença que existe entre governos livres e governos que o não são,
é:
Que em certos paizes a vontade que dirige os negocios publicos é em
verdade a do soberano; n'outros paizes é a da nação.
Resta-nos ver em qual d'essas duas cathegorias nós nos achamos.
Portugal é indubitavelmente governado pelos seus eleitos. O rei não tem
a minima ingerencia na direcção dos negocios. O unico acto de iniciativa
pessoal que temos visto praticar ao soberano consiste exclusivamente em
dar habitos de Christo a alguns cantores extrangeiros. Os cantores
guardam d'estas distincções conferidas pela corôa uma saudosa lembrança.
Lemos, por exemplo, em um jornal de hoje que o baritono Cotogni mandara
a Sua Magestade uma photographia, em que o artista conseguiu fazer
reproduzir a sua pessoa na plenitude fascinadora de todos os seus meios
physicos. Um habito de Christo que se dá, uma photographia com
pretenções a gentil que se recebe, e estão quites a arte e a monarchia.
Ninguem dirá que por tão innocentes commercios de affeição el-rei
manifeste o intuito partidario--de lançar-se nos braços de um valido. Os
unicos convivas extra-officiaes do principe--os tenores e os baritonos
de _primo-cartello_--estão fóra de toda e qualquer suspeita malevola que
não seja--a de desafinarem.
Temos portanto que a mais perfeita soberania representativa na gerencia
de todos os negocios do estado existe effectivamente desassombrada e
livre sob a monarchia portugueza.
Se depois d'isto o deputado sr. Rodrigues de Freitas e os seus
correligionarios politicos, bem como todos os demais srs. deputados, nos
dizem que a republica--com ser o mais perfeito dos governos segundo uns,
ou ser um imperfeito governo segundo outros--não póde por emquanto
existir em Portugal, porque o povo carece ainda da instrucção precisa
para tomar o governo de si mesmo, hão de permittir os illustres
deputados que nós tiremos d'esse seu argumento todas as conclusões que
elle encerra....
E que digamos a suas excellencias:
Que, se um povo carece de capacidade para sustentar uma republica, é
egualmente incapaz de supportar um regime constitucional. Porque a
verdade, que ninguem nos poderá contestar, é esta: que nós estamos sendo
governados ha muitos annos, unica e exclusivamente, pelos poderes
eleitos.
Ora, se o povo não póde exercer suffragio para a eleição do governo sob
o regime republicano, como é que póde achar-se habilitado para eleger o
governo sob o regime monarchico? Em um e outro caso temos exactamente o
mesmo processo, a mesma operação electiva, os mesmos dados na
constituição dos poderes, as mesmas consequencias no uso do mandato, os
mesmos resultados no exercicio do governo. A grande responsabilidade
eleitoral da delegação do poder é exactamente a mesma na republica e na
monarchia parlamentar.
Falta-nos a capacidade intelectual para o governo electivo da
republica?! Quem é então que tem a posse exclusiva d'essa capacidade no
regime parlamentar da monarchia? Como é que, passando do systema
monarchico para o systema republicano, nos desapparece ámanhã perante o
exercicio do suffragio a capacidade que temos hoje perante o mesmo
exercicio? Quem é que pensa entre a organisação parlamenlar do governo
portuguez?
Segundo os srs. deputados democratas, alguns dos quaes confessam ter a
republica pelo mais perfeito e mais cabal dos governos, quem hoje pensa
por suas excellencias e pelo povo que os elegeu é sua magestade el-rei!
Pelo que suas excellencias nos dizem, o soberano não é o poder
moderador, é o poder-pensante. Quando a corôa cahir ao rei, cae-lhes
tambem a elles o cerebro. A camara electiva, a filha do povo, a
representante dos nossos interesses e dos nossos direitos, a responsavel
da força e da lei, assim o declara! Ella só é digna, só é autonoma, só é
independente e pensante--emquanto houver um rei. No momento em que o
monarcha descer do throno, ella será inepta. Animaes do Apocalypse, os
srs. deputados só fallam agora pela sugestão divina imposta pelo
sceptro. A tribuna, essa tribuna que ahi está, se um dia o rei lhe
voltar as costas, recusará com pudor o copo d'agua oratorio, e
pedirá--herva.
* * * * *
Será falso o argumento da incapacidade do paiz, com que os srs.
deputados combatem a opportunidade da republica em Portugal? Não é. Se a
camara que ahi temos diante dos nossos olhos é a expressão legitima do
suffragio popular, o argumento é verdadeiro: o paiz é incapaz. Sómente
as consequencias que esse argumento encerra não ferem sómente o direito
á republica, ferem tambem o direito á liberdade. A logica não póde parar
onde á casuistica dos rabulas apraz que ella pare: a logica ha de ir até
onde o senso commum a possa acompanhar, e a logica leva o juizo, a boa
fé e a verdade a declararem abertamente o seguinte: Se a camara electiva
que acaba de occupar-se da discussão d'estes principios dá
effectivamente a medida legal e authentica da moral, da virtude e da
capacidade publica, então a questão do governo não póde versar entre uma
republica e uma monarchia democratica e parlamentar. A questão é mais
complexa e mais elevada. A questão, srs. deputados, é se vossas
excellencias, teem ou não teem a capacidade precisa para serem os
representantes de um povo independente. A questão é de eleição ou de
não eleição; é de governo livre ou de governo despotico. Se os legitimos
representantes do povo prestam, nós teremos a liberdade com qualquer dos
dois governos livres--republica democratica ou monarchia parlamentar. Se
os legitimos representantes do povo não prestam, teremos--a anarchia na
republica, e teremos--a escravidão na monarchia.
* * * * *
Ora a representação nacional ha muito tempo que está sendo em Portugal
uma farça ridicula para a sciencia e uma vergonha publica para o
patriotismo. A camara é de uma ignorancia encyclopedica. Erra e insulta,
e não se esclarece nem se desaffronta,--o que prova que não tem sciencia
e que parece não ter caracter.
Poderiamos confirmar com muitos exemplos tirados dos ultimos debates
parlamentares a verdade d'essa asserção, que poderá ser tida por
arrojada, mas não por duvidosa. Não particularisamos esses factos porque
elles envolvem nomes de homens, e nós, que não temos duvida em deixar
cahir sobre as pessoas o ridiculo, temos repugnancia em deixar pesar
sobre ellas a vergonha. A critica, se a levassemos até ahi,
tornar-se-hia uma execução do alta justiça, porque o ridiculo lava-se
na rehabilitação com que nos retemperam os actos sérios, a vergonha
quando mancha o caracter faz num nodoa corrosiva e indelevel. As
_Farpas_ ferem apenas. O ferrete imprime-se com o ferro em brasa. Por
essa razão preferimos adoptar n'este assumpto a generalidade impessoal.
Faltam á camara as idéas politicas e faltam-lhe os principios moraes.
D'aqui resulta uma perturbação insanavel, um mal sem cura. É a
corrupção, é a gangrena, é a paralysação senil affectando o jogo de todo
o machinismo constitucional.
Temos o socego interior e temos a paz no extrangeiro; gozamos da
liberdade politica e da liberdade individual, e não obstante no paiz
todo ha um surdo descontentamento geral.
Todos os espiritos que se applicam ao estudo dos caracteristicos que
prenunciam as evoluções da liberdade, comprehendem, tanto em Portugal
como já hoje fóra de Portugal, que está eminente sobre nós uma d'essas
grandes transformações politicas que apparecem nos paizes livres sempre
que todas as questões que serviam para delimitar o campo dos
differentes partidos se acham liquidadas, e que o progresso não inspira
a creação de novas questões que sirvam de base para novos partidos.
Em Portugal os partidos acabaram ha muitos annos. Não existem
divergencias de opinião sobre qualquer principio capital que interesse o
paiz inteiro. Como o interesse do paiz desappareceu, a urna fica
entregue ao arbitrio da auctoridade, e os círculos eleitoraes
convertem-se em burgos podres. Os regedores com os cabos de policia
elegem a maioria, os grandes proprietarios com os seus caseiros e os
seus amigos votam as opposições. A vontade popular é muda e passiva, o
que quer dizer que as fomes intimas da vida nacional estão obstruidas ou
seccas.
Os governos não se sustentam no poder porque faltando-lhes uma opposição
perfeitamente e fortemente constituida e assignalada, como a que separa
na Inglaterra os _tories_ e os _whigs_, não podem tambem contar com uma
maioria consistente e robusta. Para manter os apoios oscillantes o
governo acode submissamente ás exigencias dos pequenos corrilhos,
promette, desdiz, cede, transige, compra, troca, vende, intriga, e cae
de fadiga, apupado e corrido.
Ha dez annos temos tido assim quarenta ministerios. Os ex-ministros
constituem pequenas dynastias de pretendentes constantemente ávidos do
poder. Estes pretendentes quando não teem forças necessarias para
alcançar o governo procuram formar no paiz, por meio da sua influencia
burocratica, o partido que não teem na camara, e distribuem pelos seus
amigos os empregos publicos que arrancam ao gabinete ameaçando-o com
crises de seis votos sempre dependentes do descontentamento ou da
satisfação pessoal dos pequenos chefes dos pequenos bandos.
O paiz inteiro vive n'uma miseria baixa, n'uma pobresa degradante, sem a
altivez, sem o brio dos pobres valentes, que nunca dobram a espinha nem
estendem a mão. Vejam-se no exercito os filhos do povo: nem a educação
militar consegue dar-lhes pelo menos a attitude exterior da dignidade e
da força, o passo firme, a cabeça alta, o porte determinado e energico
que caracterisam logo no primeiro aspecto physico os fortes cidadãos dos
paizes em que se sabe guardar e manter a liberdade!
A classe operaria faz _grèves_, no que está inteiramente no seu
direito, mas faz tambem litteratura jornalistica e oratoria
sentimental,--o que ridicularisa o trabalho, humilha a austeridade do
direito e leza a legitimidade dos interesses, obrigando os
obreiros--jornalistas e oradores--a pedirem mais descanços para
discretearem, em vez de pedirem mais obra para fazerem.
O commercio está arruinado. A lavoura está decadente. A propriedade está
hypothecada.
Só prosperam, só se procriam, só se reproduzem indefinidamente as
instituições de jogo e de usura, as casas de penhores e os bancos!
Os bancos são os logares de perdição em que os paizes pobres e
ambiciosos se arruinam trocando a sua pequena riqueza real por uma maior
riqueza contingente e fictícia, abdicando o trabalho e creando o jogo,
dando dinheiro e recebendo papeis.
A mocidade vive nas antecamaras do estado como os antigos poetas do
seculo passado nas salas de jantar dos fidalgos ricos. Os velhos são
agiotas ou servidores do estado. Os moços são bachareis e querem
bacharelar ácerca da coisa publica e á custa da mesma coisa ácerca da
qual bacharelam. Dizem-se republicanos, democratas, socialistas, fallam
muito na organisação systematica do trabalho e nos destinos das classes
laboriosas, mas não nos dão em si proprios o exemplo de que o primeiro
dever de todo o cidadão que se quer prezar de democrata e de livre é
elle proprio bastar para si mesmo, prover pela sua iniciativa a todas as
suas necessidades, _descentralisar-se_, trabalhar só, viver de si, que é
o unico meio de não ser explorado e de não explorar ninguem, affirmar-se
finalmente na unica fórma da independencia poderosa e legitima, na unica
dignidade verdadeira e segura--o trabalho pessoal e livre. A mocidade
tem a mais elevada comprehensão dos destinos sociaes, da moral e da
justiça. Unicamente a mocidade tem um defeito que ha de esterilisar a
sua iniciativa: ella pensa, mas não trabalha. Assim, se pela sua razão
ella caminha para a conquista ideal das coisas justas; pelas
necessidades da vida ella fica fatalmente na orbita subalterna das
simples coisas conquistadas. Antes de traçarmos o etinerario luminoso da
nossa alma pelas espheras transcendentes, temos obrigação de aprender a
sustentar a nossa besta na viagem. Proudhon tinha razão, mas tambem
tinha um officio. E era depois de ganhar livremente o seu pão como
typographo ou como caixeiro que elle ganhava livremente como philosopho
e como critico as consciencias dos outros pela justiça.
* * * * *
A raça portugueza foi lentamente e surdamente corrompida pelo antigo
despotismo monarchico, pela soberba intrepida e bulhenta dos fidalgos,
pelo oiro das conquistas e principalmente pelo monasticismo. Fizemo-nos
ociosos, vaidosos, pusilanimes, supersticiosos e fanaticos. A
religião--mais clerical que divina--penetrando-nos completamente,
dando-nos uma lei infallivel para a consciencia, prohibindo-nos pensar,
assegurando-nos a bemaventurança com o facil remedio do arrependimento,
lavando-nos de todos os crimes por meio da simples confissão d'elles,
lançou-nos na inercia passiva a respeito do problema dos nossos destinos
mais elevados. Ensinaram-nos a explicar a culpa pela tentação do demonio
e a considerarmo-nos innocentes pela absolvição dos confessores. Com
similhante theoria o dever e a responsabilidade desapparecem. A
consciencia cae na immobilidade. As altas relações verdadeiramente
religiosas do homem com Deus desapparecem na intervenção do clerigo que
se encarrega de todas as accommodações com o céo. Quando um povo assim
delega inteiramente nos seus padres o cuidado de salvarem por elle a
eternidade da sua alma, como querem que esse povo tenha para dirigir o
que é temporal e contingente o valor, a dignidade, o sentimento de
responsabilidade e de iniciativa que não teve para guardar por si mesmo
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