A Queda d'um Anjo: Romance - 07

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Lisboa, e na provincia, segundo o seu genio e habitos aldeãos. Concluiu,
dizendo que: _Cum fueris Roma, Romam vivito mora_,[20] e que o fazer-se
singular importava fazer-se ridiculoso; e que os seus annos não eram
ainda bastantes para authorisarem a distinguir-se no mero accidente dos
trajos.
Perguntado por que deixára de tomar rapé, costume indicativo de homem
pensador e estudioso, respondeu que alguns escriptores modernos
attribuiam á ammoniaca componente do rapé, o deperecimento das
faculdades retentivas, pela acção deleteria que o poderoso alcali
exercitava sobre a massa encephalica. Além de que a fumarada do charuto,
sobre ser purificante e anti-putrida, dava aos alvéolos solidez, e
consistencia aos dentes.
Estas explicações não evitaram que o desembargador, com os seus velhos
amigos, prognosticassem o derrancamento do morgado da Agra, depois que
elle se retirou, algum tanto azedado das reflexões d'aquella gente
encanecida.
Sarmento não o convidára a ir visitar as filhas a Campolide, nem de
leve; no correr da noite, fallou d'ellas. Calisto Eloy tambem não
suscitou conversação relativa ás senhoras, porque já a doblez do
espirito lhe tolhia a usual franqueza e familiaridade.
Entrou a dementar-se aquella desconcertada cabeça. A saudade, em vez de
lhe tirar lagrimas do intimo amadurou-lhe temporamente a apostêma de
sandices, que em todo homem se cria paredes-meias com o coração. Ahi
começa elle a imaginar que o desembargador Sarmento, adivinhando os
amores mal recatados de Adelaide, a obrigara a sair de Lisboa.
Corroborava a suspeita não o convidar elle a visitar as damas. Isto
sobre excitou-lhe o sentimento; por que, a seu vêr, Adelaide estava
penando, havia uma victima, um coração sopesado, uma alma em abafos de
paixão.
Esta conjectura atirou com Calisto para os tempos cavalleirosos.
O olhar em si, e ver-se maneatado pelos vinculos sacramentaes, não o
reduzia á compostura e honestidade de seu estado e annos. Ainda assim,
sejamos justiceiros e ao mesmo tempo misericordiosos com esta alma
enferma: na cabeça allucinada de Calisto de Barbuda não havia idéa
ignobil e impudica.
O amor, resaltando da cratera abafada quarenta e quatro annos, dizia-lhe
que era fidalguia de alma não transigir, por conveniencias e respeitos
sociaes, com a oppressão, e alvedrio paterno. Se Adelaide o amava como e
quanto Calisto já não podia duvidar, sua honra d'elle era pôr peito á
defesa da oppressa, beber metade do absyntho do seu calix, luctar, sem
desdouro da probidade de um Barbuda, até perecer, exemplo de amadores de
antiga tempera.
Amou quem isto lê, e tresvariou aos vinte annos? Passou por uns hórridos
eclipses de entendimento, que apoz si deixam lagrimas tardias e
vergonhas insanaveis?
Amisere-se, pois, d'aquelles lucidissimos espiritos de Calisto, que por
um se vão apagando ao ventar rijo da paixão, quaes se apagam em céo de
bronze as estrellas do mar alto, já quando o naufrago desesperançado
finca os dedos recurvos na espuma das vagas.
Ó mal-sorteado Calisto! que aureola de patriarcha te resplendia em volta
do teu chapéo de merino e aço, quando entraste em Lisboa! Que anjo eras,
entrajado na tua casaca de saragoça sem nodoas! Aquella scientifica boa
fé com que procuravas monumentos em Alfama, e agua depurante do muco
catharroso no chafariz d'El-Rei, e querias que os aljubêtas da rua de S.
Julião te dessem conta do chafariz dos cavallos!...
Que te valeram as maximas de boa vida colhidas a centenares nos teus
classicos, e enceleiradas n'essa alma, refractaria á ternura de tanta
moça escarlate e succada, que, lá em Caçarelhos, se enfeitava para achar
graça em teus olhos?
Cairias tu nas piozes d'esta princeza dos mares, d'esta Lisboa que
filtra aos nervos dos seus habitantes o fogo que lhe estua nas
entranhas?
Cairias tu, anjo?


XXI
*O mordomo das tres virtudes cardeaes*

Era por uma noite escura e fria de abril.
O vento esfusiava nas ramalheiras de Campolide.
A lua, a longas intermittencias, parecia, wagon dos céos, correr
velocissima entre nuvens pardas, para ir ingolfar-se n'outras. Então era
o carregar-se a escuridão da terra, e mais para pavores o rangido das
arvores sacudidas pelos bulcões do septentrião.
Soaram doze horas por egrejas d'aquelles valles. Era um como crebro
soluçar da natureza por pulmões de bronze. Era o grão clamor da terra em
angustias parturientes de alguma enorme calamidade.
Áquella hora, e por aquella noite capeadora de assassinos e
bestas-feras, Calisto Eloy, embrulhado n'um capote de tres cabeções e
mangas, que trouxera de Caçarelhos, passava rente com o muramento da
quinta de Adelaide.
Depois, como saisse da vereda escura a um recio que defrontava com a
frontaria da casa, aqui parou, e cruzando os braços, se esteve largo
espaço quedo, e fito nas janellas.
Nem lua nem scintilla de estrella no céo! As confidentes d'aquelle
amador torvo como o cerrado da noite, negro como o coração que lhe arfa
a lapela esquerda do collete, são as trevas. Quiz accender um charuto.
Nem os phosphoros vingavam lampejar na escuridão.
E o vento assoviava no vigamento da casa, e nas orelhas de Calisto, o
qual, levado do instincto da conservação, levantou a gola do capote á
altura das bossas parietaes, e disse, como Carlos VI:
--Tenho frio!
E passou-lhe então pelo espirito um painel da sua situação tirado pelo
natural. Viu-se no espelho, que a razão lhe offereceu, e cobrou horror
da sua figura.
Bem que tal acto não implicasse delicto, nem affrontasse os bons
costumes, Calisto, apertado no transito difficil das indoles que se
passam do comportamento austero e captivo ás liberdades e solturas do
vicio, olhava com saudade o seu passado, as suas alegrias puras; e, mais
que tudo, áquella hora, como o frio cortava as orelhas, lembrou-se da
quentura e aconchego do leito nupcial.
E como esta visão honesta, para mais o pungir, havia de ser encarecida
com uma imagem de mulher leal e immaculada, Calisto viu D. Theodora de
touca, n'aquelle dormir placido de quem adormeceu com a alma quieta e
intemerata. Não bastava a touca, tão hygienica quanto pudica, a
penitencial-o com remordentes saudades: viu-lhe tambem o lenço de tres
pontas de algodão azul com que ella costumava resguardar os hombros,
antes de subir as quatro escadinhas que conduziam ao alteroso leito de
páo santo.
Se visões analogas, alguma vez, puzeram guerra ao demonio tentador dos
maridos infieis e o venceram, d'esta feita não se logra a sã virtude do
triumpho.
É que as toucas e lencinhos pudibundos, sobre não serem enfeites mui
seductores, algumas vezes tornam a virtude rançosa e tamsómente boa para
adubar palestras de avós com as netas casadoiras. Este mal deve-se ás
artes da estatuaria, artes em que a imaginativa não põe nada seu, porque
tudo é copiado da natureza nua, ou quasi nua. Nem se quer as Niobes, as
Lucrecias e Penelopes o buril respeita. Nos casos mais lacrimaveis e
tragicos, querem fados máos que os olhos achem sempre pasto á cobiça,
quando a impressão devera ser toda para levantamentos de espirito, e
«visões altas» como diz o bom Sá de Miranda.
Quando a arte deshonesta não despe as figuras, veste-as de feitio que
pelo ondeado das roupas transparentes esteja o peccado a fazer negaças a
conjecturas taes que, certo estou, Calisto Eloy, antes de se empestar em
Lisboa, se taes impudicias visse, romperia no parlamento os vesuvios da
sua eloquente indignação. E a posteridade, ajuizando da moral d'esta
nossa edade de limos e alforrecas, viria a este lameiral esgaravatar a
perola da edade aurea, caida dos labios do marido de D. Theodora, a
qual, segundo fica dito, dormia de touca e lencinho de algodão azul de
tres pontas.
Esta peregrina imagem não bastou a desandar Calisto pelo caminho de
Lisboa, e do seu gabinete, onde os pergaminhos dos seus livros pareciam
rever lagrimas de amigos descaroavelmente desprezados. O infeliz não
desfitava olhos de certa janella, desde que vira perpassar uma luz pelos
resquicios das portadas. Podia a trahida Theodora antepôr-se aos olhos
extasiados do esposo, com a pudenda touca, ou com as madeixas
estrelladas de brilhantes, que elle não a via nem queria ver.
Ahi por volta de meia noite estava Calisto recordando o que dissera, em
circumstancias analogas, Palmeirim aquelle grão cavalleiro de Francisco
de Moraes, diante do castello de Almourol que fechava em seus arcanos a
formosa Miraguarda. N'isto scismava, comprehendendo então as phrases
mélicas dos famosos amadores, quando as portadas da janella se abriram
subtilmente, e logo a vidraça foi subindo mui de leve.
O recanto, em que o morgado da Agra se abrigára do vento, estava fóra do
caminho, e sumido aos olhos da pessoa que abrira a janella. Ao mesmo
tempo, ouvia elle passos na estrada, e logo viu acercar-se um vulto
rebuçado da casa de Adelaide, e parar debaixo da janella que se abrira.
Conjecturou Calisto de Barbuda, que D. Catharina Sarmento, a esposa
infida, reincidira nas presas do velho peccado, e sentiu algum tanto
molestada sua vaidade de regenerador de corações estragados. Tambem
suspeitou que Bruno de Vasconcellos, quebrando a palavra jurada, voltára
do estrangeiro a reatar a criminosa alliança. Não lhe deram tempo a mais
conjecturas. O encapotado espectorou um cacarejo de tosse secca; da
janella, como contra-senha, respondeu outro cacarejo de mais sympathico
som, e logo as duas almas se abriram n'este dialogo:
--Ainda bem que recebeste a minha carta, Vasco!...--disse
Adelaide--Estavas em casa da tia condessa? Eu mandei lá por me lembrar
que se fazia lá hoje a novena das Chagas...
--Fiquei espantado--disse Vasco da Cunha--Que rapida deliberação foi
esta?! Vir para uma quinta com tão máo tempo! Foi caso de maior!...
--Fui eu a causa--tornou ella--São melindres do meu coração, que, por
amor de ti, não soffre que outra voz de homem lhe falle a linguagem que
eu só quero e acceito de tua bocca. Antes me quero aqui escondida com a
tua imagem, que ver-me obrigada a tolerar os atrevimentos do Calisto de
Barbuda...
--Que!--atalhou Vasco--pois aquelle homem tão serio!... tão temente a
Deus!...
--É um hypocrita com a brutalidade de um provinciano!... Offereceu-me
uns versos em segredo! Que ultraje! que falta de respeito á minha
posição...
--E que desmoralisada e irreligiosa creatura! Casado, já d'aquelles
annos, legitimista, e catholico, segundo diz, e ousar... Estou
espantado! E a tia condessa que me tinha encarregado de o convidar para
assistir, no domingo á festa das Chagas! Fiem-se lá!... E tu não faltes,
á festa, Adelaide. Esto anno fazemol-a com toda a pompa. O prégador já
me leu o discurso, e trata eruditamente a materia. A prima Lacerda vae
cantar um _Benedicite_, e a prima viscondessa de Lagos canta um _Tantum
ergo_. Havemos de fazer melhor festa que a do conde de Melres. Eu começo
ámanhã a colher flores e a pedil-as para enfeitar o altar dos tres reis
magos e das tres virtudes cardeaes, de que me fizeram mordomo, não sei
se sabias?
--Não sabia, meu amor--disse Adelaide, congratulando-se com os
enthusiasmos pios do excellente moço.
A palestra proseguiu n'este tom por espaço de uma hora. A lua espreitava
estas duas pessoas por entre as nuvens, que a pouco e pouco se foram
descondensando. O céo azulejou-se e estrellou-se para galardoar a
virtude do mordomo das tres virtudes cardeaes e da bella menina
destinada a maridar-se com o mais energico influente da festa das
Chagas, com que o devoto conde de Melres se havia de dar a perros.
No entanto, Calisto Eloy, consultando a sua consciencia a respeito de
Vasco da Cunha, decidiu que o homem, se não era um santo, propendia
grandemente para a semsaboria de idiotismo. Esta critica é a prova de um
animo já iscado da peçonha da meia impiedade que degenera em impiedade
inteira. Já como castigo de escarnecer um moço virtuoso, sentia elle
encher-se-lhe de amargura o coração. Não bastava ouvir-se qualificado de
hypocrita brutal por Adelaide; quiz de mais d'isto a providencia dos
amantes lerdos, providencia que eu não posso escrever se não com _p_
pequeno, quiz, digo, que Vasco da Cunha, mancebo em flor d'annos e
gentileza, se estivesse alli rejubilando em novenas e mordomias das tres
virtudes cardeaes, em quanto elle Calisto, a mais de meio caminho da
morte, ardia em fogo impuro e cobiça peccaminosa, com os olhos cerrados
á visão duas vezes pura de uma esposa de touca e lencinho azul de tres
pontas sobre as espaduas não despeciendas, segundo me consta.
Merecem escriptura as ultimas phrases de Adelaide e Vasco.
A menina, interrompendo os enlevos do devoto moço, que se deleitava em
conjecturar a zanga do conde de Melres, perguntou-lhe, com doce
requebro, quando viria o dia suspirado de sua união.
Vasco deteve a resposta alguns segundos, e disse:
--Deixemos vêr se morre minha tia Quiteria, que me quer deixar os
vinculos do Algarve.
--Pois nós--volveu Adelaide magoada--não poderemos ser felizes sem os
vinculos de tua tia Quiteria, meu Vasco?
--Ninguém é feliz desobedecendo aos seus maiores, replicou Vasco. A tia
Quiteria quer que eu espere a volta d'el-rei para depois tomar ordens
sacras, e trazer mais uma mytra episcopal á nossa linhagem onde estavam
como em vinculo as principaes prelazias do reino.
Adelaide, não obstante o coração, quando aquillo ouviu, sentiu-se mal do
estomago.


XXII
*Outro abysmo*

Esta pungente lancetada não esvermou a postema do peito de Calisto de
Barbuda. Desde que qualquer sujeito perde o siso do coração, escusado é
esperar que a razão lh'o restaure: em tão boa hora que elle o recupera
depois das amargas provas. O homem, porém, que amanhece tolo aos
quarenta e quatro annos, a mim me quer parecer que ao entardecer-lhe a
vida a tolice refinará.
Tenho dois grandes exemplos d'isto: um é Calisto de Caçarelhos; o outro
é Henrique VIII de Inglaterra. Este, ahi pelas alturas dos quarenta
annos, tão bom homem era, que até escrevia contra o impio Luthero, e
vivia santamente com sua esposa, Catharina de Aragão. Insandeceu de
amor, vinte annos depois de marido exemplar, e d'ahi por diante sabe o
leitor que golpes elle deu no peito invulneravel do papa e no fragil
pescoço das pobres mulheres.
Calisto Eloy não será capaz de repudiar nem degolar Theodora, porque
n'este paiz ha leis que reprimem os patetas sanguinarios; todavia, eu
não assevero que elle seja incapaz, alguma hora, de lhe chamar parva e
hedionda, e de lhe atirar com a touca e com o lenço azul de tres pontas
á cara vermelha de pudor. Veremos.
Calisto, digamol-o sem refolhos, caiu. Atascou-se. Foi de cabeça ao
fundo do pégo em que deram a ossada o ultimo rei dos godos, e Marco
Antonio, e o rei enfeitiçado pela comborça Leonor Telles, e Simplicio da
Paixão, e varias pessoas minhas conhecidas, que experimentaram todos os
systemas de desfazer a vida, desde o muro de S. Pedro d'Alcantara até ás
cabeças dos palitos phosphoricos.
Este enguiçado Barbuda, na volta de Campolide, não teve uma lagrima que
chorasse sobre a sua dignidade esfarrapada. Circumvagou a vista pelos
seus livros, figurou-se-lhe vêr na lombada de cada in-folio o olho de um
demonio zombeteiro, bem que aquelles pergaminhos encadernassem almas, no
céo bem-aventuradas, e na terra immorredoiras, almas que n'este mundo se
chamaram fr. João de Jesus Christo, fr. Pantaleão d'Aveiro, fr. Antonio
das Chagas, e dezenas d'estes talismans, que tem salvado o leitor e a
mim de soçobrarmos nos parceis que esbravejam á volta de Calisto.
Eram duas horas da manhã, quando o morgado experimentou uma sensação,
que viria a definir-lhe o espirito, se alguem carecesse de vêr este
homem a luz extraordinaria.
Nas aguas-furtadas do andar, em que elle morava, residia uma viuva de um
tenente, senhora d'annos insuspeitos, de muitas lerias, minguada de
recursos, e, por amor d'isso, se offerecêra a cuidar da casa e da
cosinha do deputado. Ás duas horas, pois, bateu Calisto á porta da
visinha, e, como ella lhe fallasse, exprimiu elle a sensação imperativa,
que o levou alli, por estes termos:
--Sr.^a D. Thomazia, ha por ahi alguma coisa que se coma?
--Não ha nada feito; mas eu vou fazer chá, sr. Barbuda, e o que v. ex.^a
quizer.
--Olhe se me póde frigir uns ovos com presunto--volveu elle.
--Pois lá vão ter d'aqui a pouco.
--Veja lá que se não constipe, sr.^a D. Thomazia--recommendou elle.
--Não tem duvida. Olhe que eu tenho muito que lhe dizer. Achou um
bilhete de visita na escrevaninha? perguntou D. Thomazia pelo buraco da
fechadura.
--Não achei.
--Pois lá está. Faz favor de ir, que eu vou vestir-me.
--Então a sr.^a D. Thomazia está-se constipando? Ora esta! Isso é que eu
não queria!... Cá desço, e até logo.
O bilhete, que o deputado encontrou, dizia: Iphigenia de Teive Ponce de
Leão, e logo a lapis: _viuva do tenente general Gonçalo Telles Teive
Ponce de Leão_.
Desfilaram por diante do espirito de Calisto Eloy regimentos de
illustres familias oriundas dos Telles e dos Teives e dos Ponce de Leão.
Na linhagem dos Barbudas tambem alguma vez tinham entrado os Teives, e
uma decima nona avó de Calisto viera de Hespanha, e era Ponce, dos
Ponces genuinos dos duques de Banhos.
Estava o morgado combinando estes parentescos contrahidos ahi pelo
ultimo quartel do seculo XII, quando D. Thomazia entrou com o presunto e
ovos. Calisto assentou o prato sobre dois volumes da Historia
Geneologica, que lhe tomavam a banca: e quanto a deglutição lh'o
permittia, n'alguns intervalos, foi perguntando:
--Então quem é esta senhora, que me procurou?
--Eu só sei dizer, respondeu D. Thomazia, que é uma creatura linda,
linda quanto se póde ser!
--Como assim?! atalhou Calisto, retendo uma lasca de presunto entre os
dentes molares, pois ella não é a viuva de um tenente general, que
naturalmente havia de morrer velho?
--Póde ser que elle morresse velho; mas a viuva o mais que póde ter é
trinta annos.
--E com que então galante?
--É uma imagem de cera. V. ex.^a ha de vêl-a. E então elegante! A
cintura cabe aqui, proseguiu D. Thomazia, formando um annel com dois
dedos. Eu, quando ouvi parar uma carruagem, cuidei que era v. ex.^a e
vim abrir as portas do escriptorio. A senhora veiu subindo, e puchou á
campainha. Eu espreitei lá de cima, e, a fallar verdade, lembrei-me se
seria a sua esposa, que lhe quisesse fazer uma agradavel surpreza.
Perguntou-me ella pelo sr. Barbuda de Benevides, e foi entrando comigo
para a sala. Levantou o véo, e disse: «Não está em casa?» Que voz, sr.
morgado, que voz de creatura aquella!
--E isso a que horas foi? atalhou Calisto. Era por noite alta?
--Não, meu senhor. Eram seis horas da tarde. V. ex.^a tornou ás oito,
mas saiu logo; e, quando eu voltei de fazer uma visita, já o não achei
para lhe dar esta noticia.
--E depois a senhora que mais disse?
--Mostrou-se pesarosa de o não encontrar, e prometteu de voltar hoje ás
tres horas.
--E a sr.^a D. Thomazia saberá o que me quer essa dama?
--Não sei; o que ella sómente disse foi que v. ex.^a era um genio.
--Pois ella disse-lhe isso sem mais nem menos?
--Foi a respeito de vêr aqui estes livros muito grandes, acho eu. Esteve
a reparar n'elles com uma luneta... E a graça com que ella punha a
luneta!... Mulher assim!... Os homens ás vezes por mais asneiras que
façam, teem desculpa!...
--As paixões, minha sr.^a D. Thomazia...--obtemperou o morgado, e lambeu
os beiços molhados da libação de um vinho nervoso d'aquella garrafeira
já mencionada. E proseguiu.--As paixões do amor... Nem os grandes sabios
nem os grandes santos se exemptaram d'ellas. Somos todos de quebradiço
barro; somos uns pucarinhos de Extremoz nas mãos infantis das mulheres.
O tributo é fatal: quem o não pagou aos vinte annos, ha de pagal-o aos
quarenta, e mais tarde, quando Deus quer... Deus ou o demonio, que eu
não sei ao justo quem fiscalisa estes malaventurados successos de amor,
que a historia conta e a humanidade experimenta cada dia...
--É um gosto ouvil-o!--interrompeu D. Thomazia--Bem no disse aquella
senhora: v. ex.^a é um genio, e falla de modo que se mette no coração da
gente. Quer que lhe diga a verdade, sr. Barbuda? Foi bom que v. ex.^a me
encontrasse n'esta edade. Se eu fosse moça e bonita, como dizem que fui,
um homem como v. ex.^a havia de me dar cuidados.
--Ora, minha sr.^a D. Thomazia, isso é lisonja e favor. Eu já não estou
tambem na edade de tocar corações, nem os meus habitos vão muito para
ahi!
--Edade!--accudiu a viuva do tenente--v. ex.^a póde dizer que tem trinta
e cinco annos, que ninguem lh'o duvida. É mania agora dos rapazes
quererem á fina força passar por velhos. Pergunte quem quizer á visinha
do primeiro andar se o acha velho. Está-me sempre a perguntar se v.
ex.^a me diz d'ella alguma coisa... Conhece-a?
--Bem sei: uma mocetona cheia, com umas fitas escarlates na cabeça...
Não é má...
--E sabe v. ex.^a que mais? Eu vou apostar que esta senhora, que veiu
cá, traz coisa no coração, que a obrigou. Assim uma senhora nova,
sosinha, tão encantadora!... Aquillo, em quanto a mim, é que já o ouviu
no parlamento, e apaixonou-se. Ha muitos casos assim cá em Lisboa de
senhoras apaixonadas pelos homens de talento. O talento é uma coisa
muito bonita! Meu marido casou comigo quando era sargento do treze de
infanteria, e andava nos estudos. Era feio, e ao principio tinha-lhe
medo; mas assim que elle me mandou um acrostico... V. ex.^a sabe fazer
acrosticos?
--Ainda não me puz a isso.
--Pois como eu me chamo Thomazia Leonor e tenho quatorze letras fez-me
elle um soneto que me deu volta á cabeça, e tamanho incendio me tomou o
peito, que o amei até á morte, e ainda agora, ficando eu viuva aos
trinta e nove annos, fui, sou e serei fiel á sua memoria.
N'este ponto, D. Thomazia, ferida n'alma pelo acrostico memorando,
chorou.
Calisto represou-lhe os prantos com algumas maximas consoladoras sobre a
morte, e bocejou, já por que eram tres horas e meia da manhã, já por que
o dialogo descaira nos aborrimentos de uma palestra em dia de fieis
defuntos. D. Thomazia começou a espirrar, por que se não agasalhára
bastantemente, e assim se apartaram estas duas pessoas, que uma hora de
expansão aproximara.
Calisto, conforme ao antigo uso, levou um livro para a cabeceira do
leito. Escolheu poeta, e saiu-lhe o seu já tão querido outr'ora Sá de
Miranda. Abriu ao acaso, e saiu-lhe n'uma pagina _d'Os Estrangeiros_
esta maxima: _Duas sortes de homens ha no mundo que se possam servir: ou
muito parvos ou muito namorados, e ainda os namorados tem grande
vantagem_.
A meu vêr, o espirito d'aquelle honrado doutor, que tão santo marido
fôra de Briolanja de Azevedo, até de saudades d'ella se deixar morrer,
alli lhe viera, áquella hora, relembrar occasionalmente e a ponto uma de
suas maximas, como em paga do affectuoso respeito com que Barbuda o lia
e inculcava á mocidade depravada.
Calisto Eloy pôde ainda admirar o lidimo portuguez da maxima, e
adormeceu.


XXIII
*Tenta o seu anjo da guarda salval-o mediante uma carta da esposa*

Calisto dormiu mal.
As alvoradas de um dia feliz são mais temporãs que as da estrella
d'alva. O coração acorda primeiro que os passaros. O amor diz o seu
_fiat lux_ primeiro que Deus. Estas tres sentenças, a meu vêr, são mais
intelligiveis que o contentamento do morgado da Agra, ao levantar-se da
cama em que dormitára algumas escassas horas alvoroçadas.
O desastre de Campolide quebrantaria um homem qualquer que viesse a
cumprir n'este mundo os vulgares destinos da maxima parte dos mortaes.
Individuos notaveis já sairam scepticos e bravos cynicos de aperturas
menos dilacerantes. Os annaes ensanguentados da humanidade estão cheios
de facinoras, empuxados ao crime pela ingratidão injuriosa de mulheres
muito amadas e perversissimas. Superabundam casos de embaçadellas
analogas á de Calisto: d'estes lances obscuros tem saido aparvalhada
muita gente que era escorreita, e que se volve daninha á republica. São
uns homens que vos namoram as criadas, se vos não podem requestar a
familia; uns vampiros de sangue femeal, que trazem o demonio da vingança
no corpo, demonio meridiano e nocturno, que bebe lagrimas de mulher, em
quanto os possessos d'elle bebem cognac e absyntho. Um homem d'estes,
encostado a frade de esquina, é o leão que espreita da sua caverna
lybica a antilopa descuidosa. Officiala de modista, que se espaneja nas
verduras do jardim da Estrella, como alvéola nas praias borrifadas de
espuma, se o anjo da guarda a desampara um quarto de hora, tem os seus
dias contados. O scelerado, com o simples auxilio de um gallego, em que
por vezes se ingere e chafurda o confidente de Fausto, arranca da fronte
da alegre palmilhadeira de botinhas a grinalda de laranjeira em botão,
que esperava a sua primavera, o seu abrir-se e rescender, no primeiro
dia nupcial. Que tristeza! E ninguem falla d'isto senão eu, porque me
cumpre fazer o elogio de Calisto Eloy, que não fez cousa nenhuma
d'aquellas.
Assim que se ergueu cuidou em aformosear a saleta, cuja decoração era
menos de modesta. Saiu açodado ao armazem dos mais elegantes estofos, e
comprou alfaias magnificas. O homem pasmava dos nomes d'aquelles
objectos, nenhum dos quaes soava portuguezmente.
--Porque chamam a isto _chaise-longue_?--perguntava Calisto Eloy ao
engenhoso Margoteau.
--Porque chamam?!
--Sim: eu creio que se não offende a França no caso de chamarmos a este
movel uma cadeira longa, ou uma preguiceira, que sôa melhor. E _étagère_
e _console_ e _téte-à-tête_, e _onaise_? E é carissimo tudo isto! A
gente, pelos modos, de fóra parte os objectos, tambem paga a lição de
francez de samblador, que vem aqui aprender?
Sem embargo d'estes reparos, o oiro saiu-lhe generosamente da algibeira
bem apercebida.
A pobre saleta do morgado, dentro em pouco, transformou-se em recinto
digno de uma Ponce de Leão. Calisto, refestelado nos coxins elasticos da
ottomana, contemplava os restantes adornos do aposento, quando lhe
chegou do correio carta da sua esposa.
Dizia assim:
«Já com esta são tres que te escrevo, e ó por hora nem uma nem duas da
tua parte. Marido! que fazes tu, que não respondes? Ando a futurar que
não tens o miolo no seu logar. Longe da vista, longe do coração, diz lá
o ditado. Ora, queira Deus que não seja por minga de saude; e, se é,
dil-o para cá, que eu estou aqui estou lá.
«O primo Affonso de Gamboa esteve cá ha dias, e a modo de caçoada foi-me
dizendo que lá na capital as mulheres inguiçam os homens, e fazem
d'elles gato sapato. Eu fiquei sem pinga de sangue, meu Calisto! Mal fiz
eu em te deixar ir ás côrtes. Bem tolo é quem está bem na sua casa, e se
mette n'estas coisas dos governos, que só servem para quem não tem que
perder, como diz o primo Affonso.
O peor é se tu pegas a doidejar com as mulheres, e saes do teu sério.
Eras um marido perfeito como a santa religião o quer, e tenho cá uns
agouros no peito que me não deixam fechar olho ha tres noites. Deus te
defenda, homem, e te traga aos braços da tua mulher são e escorreito da
alma e do corpo.
Saberás que o mestre-escola anda de candeias ás avessas por que tu lhe
não respondes á carta em que elle te pediu uma venera. Olha se lhe
arranjas isso ainda que te custe pedir ao rei ou lá a quem é a tal
coisa. O homem tem-me feito favores, quando eu preciso que elle me leia
a relação dos foreiros. A vacca preta comeu o bicho, e morreu hontem á
noite. Lá se vão cinco moedas e um quartinho com a breca. O centeio da
tulha do meio deu-lhe o gorgulho, e tratei de o vender, a trezentos e
quinze, foi bem bom arranjo; eram mil e duzentos alqueires.
Olha cá, meu Calisto, disse-me a Joanna Pedra, que ouvira dizer ao
Manuel da Loja, que ouviu dizer ao compadre Francisco Lampreia, que veiu
de Bragança que lá lhe disseram que tu mandaras ir de casa de um
negociante mais de cem moedas de ouro!!! Fiquei estarrecida. Pois tu lá
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