A Queda d'um Anjo: Romance - 06

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que aquilatavam o merito dos oradores com incontrastavel rectidão de
juizo e apurado gosto. Lisboa tem dezenas d'estas senhoras Cormenins.
Não dírei que o renome de Calisto attrahisse as damas illustradas: era
grande parte n'este concurso femeal a esperança de rirem. A nomeada do
provinciano, bem que favorecida quanto a dotes intellectuaes, cobrára
fama de coisa extravagante e impropria d'esta geração.
Entrou Calisto na sala um pouco mais tarde que o costume, porque fôra
vestir-se de calça mais cordata em côr e feitio. Não me acoimem de
archivista de insignificancias. Este pormenor das calças prende mui
intimamente com o cataclismo que passa no coração de Barbuda. Aquella
alma vae-se transformando á proporção da roupa. Assim como o leitor, á
medida que o amor lhe fosse avassalando o peito, escreveria paginas
intimas, ou ainda peor, cartas corruptoras á mulher querida, Calisto, em
vez d'isso, muda de calças.
As damas, que o esperavam vestido conforme a fama lh'o pintára,
desgostaram-se de vêl-o trajado no vulgar desgracioso, do commum dos
representantes do paiz.
Apenas Calisto Eloy se assentou, entrou-se na ordem do dia, e logo o
presidente lhe deu a palavra.
Cessou o reboliço e fallario d'aquella feira veneranda, assim que o
deputado por Miranda, começou d'este theor:
--Sr. presidente! Muito ha que se foi d'este mundo o unico sujeito, de
que me eu lembro, capaz de entender o sr. dr. Liborio, e capaz de fallar
portuguez digno de s. ex.^a. Era o chorado defuncto um personagem que
foi uma vez consultar o dr. Manuel Mendes Enchundia, ácerca d'aquella
famigerada casa que elle tinha na ilha do Pico, com um passadiço para o
Baltico. V. ex.^a e a camara, podem refrescar a memoria, lendo aquelle
pedaço de estylo, que presagiou estas farfalharias de hoje.
Sr. presidente, a mim faz-me tristeza contemplar a ribaldaria, com que
os belfurinheiros de missangas e lantejoulas adornam a lingua de Camões,
despojando-a dos seus adereços diamantinos. A pobresinha, trajada por
mãos de gente ignara, anda por aqui a negacear-nos o riso como moura do
auto, ou anjo de procissão de aldeia. Se acerta de lhe pagarem os
farrapinhos broslados de folha de Flandres em algum silvedo, a mesquinha
fica núa, e nós a córarmos de vergonha por amor d'ella.
É forçoso, sr. presidente, que a linguagem castiça vá com a patria a
pique?
Á hora final da terra de D. Manuel, não haverá quem lavre um protesto em
portuguez de João Pinto Ribeiro, contra os Iskariotas, Juliões,
Vasconcellos e Mouras, que nos vendem?
_Vozes_: Á ordem!
_O orador_: É contra o regimento d'esta casa, repetir o que está dito na
historia, sr. presidente?
_O presidente_: Sem offensa de particulares.
_O orador_: Authorisa-me portanto, v. ex.^a a crer que n'esta casa está
Iskariotas, e o bispo Julião, e Miguel de Vasconcelos, e...
_Vozes_: Á ordem!
_O orador_: Pois então eu calo-me, se offendo estes personagens a quem
me não apresentaram, ainda bem! As minhas intenções são inoffensivas, no
entanto, desconsola-me a camaradagem. Se eu soubesse que estava aqui
similhante gente, não vinha cá, palavra de homem de bem!
_O dr. Liborio_: Mais prestimoso fôra ao cosmos, se o sr. Calisto
estanceasse no agro do seu covil a lidar com a fereza dos javalis.
_O orador_: Não percebi o dito bordalengo: faça favor de explicar-se.
_O dr. Liborio_: Já disse que não desço.
_O orador_: Se não desce, cairá de mais alto. Refiro a v. ex.^a a fabula
da aguia e do kágado, na linguagem lidima e chan de D. Francisco Manuel
de Mello. É o _Relogio da Aldeia_, que falla no dialogo dos _Relogios
fallantes_: «...Lembra-me agora o que vi succeder a um kágado com uma
aguia, lá em certa lagoa da minha aldeia: veiu a aguia, e de repente o
levantou nas unhas, não com pequena inveja das rãs, e de outros kágados,
que o viam ir subindo, vendo-se elles ficar tão inferiores a seu
parceiro. Julgavam por gran fortuna que um animal tão para pouco, fosse
assim sublimado á vista de seus eguaes. Quando n'isto, eis que vemos
que, retirada a aguia com sua presa a uma serra, não fazia mais que
levantar o triste animal, e deixal-o cair nas pedras vivas, até que
quebrando-lhe as conchas com que se defendia...» não me lembra bem se D.
Francisco Manuel diz que a aguia lhe comeu o miolo.
Se o sybillino collega figura na moralidade d'este conto, offerece-se-me
cuidar que não é a aguia.
(_Pausa do orador: riso das galerias_.)
Sabido, pois, sr. presidente, que as citações historicas fazem
repugnancias ao regimento e á ordem, abjuro e exorciso os demonios
incubos e succubos da historia, pelo que rogo a v. ex.^a muito rogado
que me descoime de desordeiro.
Direi de Quintiliano, se este nome não desconcerta a ordem. Trata-se de
oradores, e de estylos viciosos. Diz este mestre dos rethoricos que «ha
um natural prazer em escutar qualquer que falla, ainda que seja um
pedante, e d'aqui aquelles circulos que a cada hora vemos nas praças á
roda dos charlatães» N'esta nossa edade, Quintiliano redivivo diria:
«nas praças e nos parlamentos.»
_Vozes_: Á ordem?
_O orador_: Pois tambem Quintiliano?!
Bem me quer parecer que rarissimas vezes o admittem aqui a elle!...
_O presidente_: Lembro ao nobre deputado, que a camara não é aula de
rethorica.
_O orador_: Assim devo presumil-o, vendo que todos a professam com
dignidade, exceptuado eu, que me não desdoiro, em confessar que sou o
discipulo unico e máo de tantos mestres. Eu direi a v. ex.^a qual
eloquencia considero necessaria n'esta casa da nação: é a eloquencia que
a nação entenda. A arte de bem fallar, _ars béne dicendi_, é o estudo da
clareza no exprimir a idéa. Os affectos, as galas da linguagem, que lhe
tolhem o mostrar-se e dar-se a conhecer dos rudos, não é arte, é
tramoya, não é luz, é escuridade. Os meus constituintes mandaram-me aqui
fallar das necessidades d'elles em termos taes que por elles v. ex.^a e
a camara lh'as conheçam, ponderem, e remedeiem.
Sou da velha clientela de Quintiliano, sr. presidente. Com elle entendo
que por de mais se enganam aquelles que alcunham de popular o estylo
vicioso e corrupto, qual é o saltitante, o agudo, o inchado, e o pueril,
que o mestre denomina _proedulce dicendi genus_, todo affectação
menineira de florinhas, broslados de pechisbeque, recamos de fitas como
em bandeirolas de arraial.
Eis-me já de força inclinado á substancia do discurso do sr. dr.
Liborio. Primeiro me cumpre declarar que não sei pelo claro a quem me
dirijo. Ha dias me regalei de ler o succoso livro de um doutor grande
lettrado que escreveu da _Reforma das Cadeias_. Achei-o lusitanissimo na
palavra; mas hebraico na locução. Tem elle de bom e singular que tanto
se percebe lendo-o da esquerda para a direita como da direita para a
esquerda. Soou-me que o sr. dr. Liborio, amador do que é bom, se
identificára com o livro, e aformosentára o seu discurso com muitas
louçainhas d'aquelle thesouro.
Não sei, pois, se me debato com o sr. dr. Ayres, se com o sr. dr.
Liborio. _Se me debato_, desavisadamente disse! O discurso não dá péga a
debates que não sejam philologicos. Estes não vem aqui de molde.
Rethorica, grammatica e logica, se alguem quizer tratal-a n'este predio,
entretenha-se lá em baixo no pateo com o porteiro, ou com as viuvas e
orphãos, que pedem pão com a logica da desgraça, e com a rethorica das
lagrimas: grammatica não sei eu se a fome a respeita: parece-me que não,
por que na representação nacional ha famintos que a não exercitam
primorosamente. (_Murmurio e agitação na direita. Applausos na galeria.
Um «bravo» estridulo do desembargador Sarmento. Um cautelleiro dá palmas
na galeria popular. A tolice é contagiosa. O presidente sacode a
campainha. Restabelece-se o silencio. Calisto Eloy tabaqueia da caixa do
radioso abbade de Estevães_.)
_O presidente_: Relembro, já com magoa, ao sr. deputado que se abstenha
de divagações alheias do debate.
_O orador_: De maneira, sr. presidente, que v. ex.^a quer á fina força,
subjugar as minhas pobres idéas em _aprisoamento_, como disse
gentilmente o illustre collega!
Pois assim sou esbulhado de um sacratissimo direito? É então certo, como
disse o sr. dr. Liborio, que não ha direito em Portugal? V. ex.^a sem o
querer, está sendo, na phrase ingrata do illustre deputado, o
_substituto do anjo S. Miguel_! (_Riso_) Oh! V. ex.^a não será algoz do
pensamento, já de si tão intanguido que não é mister matal-o: basta
deixal-o morrer... Callar-me-hei, se estou magoando v. ex.^a.
_Vozes_: Falle! falle!
_O orador_: O illustre collega referiu o que vem contado no livro do sr.
dr. Ayres de Gouveia: _que o nosso rei D. Miguel já mancebo, saido da
puericia se entretinha a maltratar animaes, chegando um dia a ser
encontrado, arrancando as tripas a uma gallinha com um sacarolhas_. É
pasmoso, sr. presidente, que os dois doutores, protestando pela
legitimidade do seu rei, um no livro, outro no discurso, refiram a
sanguinaria historia do sacarolhas nos intestinos da deploravel
gallinha! Eu suei quando ouvi este canibalismo, suei de afflicção, sr.
presidente, figurando-me o desgosto da ave!
Protesto, sr. presidente, protesto contra a suja aleivosia cuspida na
sombra de um principe ausente, indefeso e respeitavel como todos os
desgraçados. Que historia villã é esta? Quem contou ao sr. dr. Ayres o
caso infando do sacarolhas nas tripas da gallinha?! Em que soalheiro de
antigos lacaios de Queluz ou Alfeite ouviram os refundidores da justiça
estas anedoctas hediondas, e mais torpes no squalôr de recontal-as?
E, depois, sr. presidente, que me diz v. ex.^a e a camara áquelle filho
da rainha da Grã-Bretanha, que é um rapinante: _uma pêga humana_! Que
musa de tamancos! _uma pêga humana_! Que imagem! que allegoria tão
ignobil, e extractado do vocabulario da ralé!...
Em desconto d'estas repugnantes noticias, fez-nos o sr. doutor o bom
serviço de nos dizer que homem em latim é _vir_, e mulher é _mulier_, e
que, em alguns casos, _homo_ tambem é homem. Ficamos inteirados e
agradecidos. Uma lição de linguagens latinas para nos advertir que a lei
não legisla para a mulher!... Teremos ainda de assistir á repetição do
concilio em que havemos de averiguar se a mulher é da especie humana? Se
os srs. drs. Ayres ou Liborio, alguma vez, dirigirem os negocios
judiciarios e ecclesiasticos em Portugal, receio que os legisladores
excluam a mulher das penas codificadas, e que os bispos lusitanos as
excluam da especie humana!... E peior será se algum d'estes ministros,
no intento de punil-as, as classificam nas aves, e nomeadamente nas
gallinhas! O horror dos sacarolhas, sr. presidente, não me desaperta o
animo!
Porque não ha de ser castigada a mulher por egual com o homem? Resposta
séria á pergunta que tresanda a paradoxo: «Porque, no delicto, as
faculdades da mulher agitam-se perturbadas; é um periodo de evolução.» A
mulher, que mata, por ciume é que mata; a mulher, que propina venenos,
por ciume é que despedaça as entranhas da victima. Isto é crime, ao que
parece; crime, porém, de _faculdades que se agitam perturbadas, e
periodo de evolução_. Se o termo fosse parlamentar, eu diria
_farelório_!
Quem ha de enristar armas de argumentação contra estes odres de vento?
O que eu melhor entendi, graças á linguagem correntia e pedestre da
arenga, foi que o illustre collega, avençado com o sr. dr. Ayres, querem
_que todo o preso seja de todo barbeado semanalmente, lave o rosto e
mãos duas vezes por dia, e tenha o cabello cortado á escovinha, e beba
agua com abundancia, e não beba bebidas fermentadas, nem fume_.
N'este projecto de lei a pequice corre parelhas com a crueldade. Que o
preso lave a cara duas vezes por dia, isso bom é que elle o faça, se
tiver a cara suja, mas obrigal-o a lavatorios superfluos, é risivel
puerilidade, juizo pouco aceiado que precisa tambem de barrela.
Privar do uso do tabaco o preso que tem o habito de fumar inveterado, é
requisito de deshumanidade que sobreleva á pena de prisão perpetua ou
degredo por toda a vida. Tirem o cigarro ao preso; mas pendurem logo o
padecente, que elle ha de agradecer-lhe o beneficio.
Estes reformadores de cadeias, sr. presidente, parece que tem d'olho
apertar mais as cordas que amarram o condemnado á sentença; picar-lhe as
veias, e desangral-o gota a gota, na intenção de o regenerar e
rehabilitar! Optima rehabilitação! humanissimos legisladores! Querem que
o preso se regenere hydropaticamente. Mandam-n'o lavar a cara duas vezes
por dia. _Agua em abundancia_, conclamam os dois doutores. Fazem elles o
favor de dar ao preso agua em abundancia; mas descontam n'esta
magnanimidade prohibindo-os de fallarem aos companheiros de infortunio,
com o formidavel argumento de que _sáem das cadeias delineamentos de
assaltos, e assassinatos de homens que sabem ricos_!...
«Delineamentos de assassinatos»! Que é isto? _Assassinato_ é coisa que
me não cheira a idioma de Bernardes e Barros. Seja o que fôr, é coisa
horrivel que sáe das cadeias com seus delineamentos, contra homens que
os _presos sabem ricos_. Aqui, sr. presidente, n'este _sabem ricos_,
quem soffre o _assassinato_ é a grammatica. O alticismo d'esta phrase é
grego de mais para ouvidos lusitanos.
O que é um preso descomedido, sr. presidente? Dil-o-hei? _Vox faucibus
haesit_!...
_É febricitante despedido do leito, que, como setta voada do arco,
exaspera em barulho os males de toda a enfermaria_. Que se ha de fazer a
um patife que é setta voada do arco? Faz-se-lhe lavar a cara terceira
vez!
Que desperdicio de poesia para descrever um preso bulhento!
_Setta voada do arco_! Que infladas necedades assopram estes estylistas
de má morte!
_Inclinando rasoamento_ (peço venia para me tambem enriquecer com esta
locução do sr. dr. Ayres) inclinando rasoamento a pôr fecho n'este
palanfrorio com que dilapido o precioso tempo da camara, sou a dizer,
sr. presidente, que a melhor reforma das cadeias será aquella que
legislar melhor cama, melhor alimento, e mais christã caridade para o
preso. Impugno os systemas de reforma que disparam em accrescentamento
de flagelação sobre o encarcerado. Visto que Jesus Christo, ou seus
discipulos, nos ensinam como obra de misericordia visitar os presos,
conversal-os humanamente, amaciar-lhes pela convivencia a ferocia dos
costumes, não venham cá estes civilisadores aventar a soledade aos
ferrolhos, o insulamento do preso, aquelle terrivel _voe soli_! que
exacerba o rancor, e os instinctos enfurecidos do delinquente.
Tenho dito, sr. presidente. Não redarguo ao mais do discurso, porque não
percebi. Sou um lavrador lá de cima, e não adivinhador de enygmas.
_Davus sum, non OEdipus_.
_O orador foi comprimentado por alguns provincianos velhos_.


XVIII
*Vae cair o anjo!*

A respeito do ultimo discurso de Calisto Eloy, as gazetas governamentaes
estamparam que a sala da representação nacional nunca tinha sido
testimunha de insolencias de tamanha rudesa e tão audaciosa ignorancia.
Os jornaes da opposição liberal disseram que o representante de Miranda,
á parte as demasias escolares do seu discurso, déra uma util, bem que
severissima lição, aos meninos que jogueteam com o paiz, indo ao
sanctuario das leis bailar em acro-batismos de linguagem, que seriam
irrisorios em palestra de estudantes de selecta segunda.
Em casa do desembargador é que o morgado deslumbrou o renome dos
fulminadores de catilinarias e filippicas. A numerosa roda do fidalgo
legitimista encarava com venerabundo assombro em Calisto Eloy. As raças
godas, que o não conheciam, concorreram a dar-lhe os emboras a casa de
Sarmento. Sangue dos Affonsos e Joões não se dedignava de inventar em
Calisto um primo. Todos queriam ter nas arterias sangue de Barbudas. E
elle, o genealogico por excellencia, modestamente contradictava o
empenho de alguns parentes honorarios; bem que, de si para si, e para
alguns amigos, se ufanava de não carecer de tal parentella para
egualar-se barba por barba com os mais antigos titulares em limpeza de
sangue. As expressões laudatorias que mais calaram no animo de Calisto
Eloy disse-as Adelaide. A menina, confessando sua surpresa no
parlamento, foi sincera. Não o julgava tão denodado e destemido em face
de gente nova, que parecia acovardar-se diante da coragem de um
provinciano algum tanto achamboado. Disse ella á mana Catharina que a
fronte de Calisto parecia allumiada, e no todo das feições e ademanes se
revelava certa nobreza e garbo, que o faziam parecer mais novo.
E era assim. Os quarenta e quatro annos do morgado, vividos na aldeia, e
no resguardo da bibliotheca, viçavam ainda frescura de mocidade. A
reforma do trajar fôra grande parte n'isto. A casaca antiga, e o
restante da roupa trazida de Miranda, tolhiam-lhe a elegancia das
posturas e movimentos, nos primeiros discursos.
Cicero e Demosthenes, se entrassem de frak, no forum ou na ágora,
desdouravam os mais luzentes relevos de suas esculpturaes orações. A
estatuaria do orador pende grandemente do alfaiate. Vistam Casal Ribeiro
ou Latino Coelho, Thomaz Ribeiro ou Rebello da Silva, Vieira de Castro
ou Fontes, de casaca de brixe e gravata sepulchral da mandibula
inferior: hão de vêr que as perolas desabotoadas d'aquellas bocas de
oiro se transformam em graniso glacial no coração dos ouvintes.
--Eu estava encantada de ouvil-o, sr. Barbuda--disse Adelaide--Tem uma
voz muito sã e argentina. Gostei de vêr a presença de espirito de v.
ex.^a, quando se levantou aquella algazarra contra as suas ironias.
Lembrou-me então que prazer sentiria sua senhora, se o escutasse!
--Minha prima Theodora de certo me não attendia--observou o morgado.--Em
quanto eu fallasse, estaria ella pensando no governo da casa, e na
calacice dos criados. Eu já disse a v. ex.^a que minha prima Theodora
entendeu no summo rigor da expressão a palavra «casamento». _Casamento_
deriva de _casa_. Senhora de casa e para casa é que ella é. E eu assim a
acceitei e assim a préso.
--Mas o coração...--atalhou Adelaide.
--O coração, minha senhora, ninguem lá nos disse que era necessario á
felicidade domestica. Tanto sabia eu o que era coração, como aquella
creancinha, que sua ex.^{ma} mana tem nos braços, sabe o que é sensação
do fogo. Ora veja como ella está estendendo as mãosinhas inexperientes
para a chamma das velas... Se as tocar, que dôr não sentirá ella?
--Então, volveu a filha do magistrado, hei de crêr que v. ex.^a ainda
ignora o que seja coração... o que seja amor?
--Se ignoro o que seja...--balbuciou Calisto.--Sabe v. ex.^a--proseguiu
elle, reanimado, apoz longa pausa--sabe v. ex.^a que no paraizo existiu
uma celestial ignorancia, até ao momento em que na arvore da sciencia
tocou Eva?
--Sim... E Adão lambem tocou...
--Depois, minha senhora. Mas não discutamos a primasia: tocaram ambos, e
eu comprehendo que deviam ambos peccar. Maior crime sería a resistencia
a Eva que a Deus. Perdoe-me o céo a blasphemia!... A que hei de eu
comparar nos nossos tempos, e n'este instante, a arvore da sciencia, da
sciencia do coração?!... Comparo-a a v. ex.^a.
--A mim?! que idéa!
--A v. ex.^a. Eu contemplei-a, e... aprendi!... Hoje sei o que é
coração: agora começo a estudar a maneira de o matar ao passo que elle
vae nascendo.
Calisto levantou-se, agradecendo á Providencia a chegada de um ancião
respeitavel que se aproximava d'elle a cortejal-o.
Adelaide quedou pensativa. Reflectiu, e considerou-se molestada e
mescabada no respeito que devia ás suas virtudes um homem casado.
Receiosa de ajuizar mal, por equivoca intelligencia do que ouvira,
buscou azo de provocar explicações de Calisto Eloy. Como o ensejo lhe
não saisse de molde, consultou a irmã, referindo-lhe o supposto
galanteio do morgado. D. Catharina dissuadiu-a de pedir esclarecimentos,
aconselhando-a a simular que o não entendêra.
Pouco antes de terminada a partida, um moço legitimista recitou um
poemeto dedicado ao nascimento do terceiro filho do sr. D. Miguel de
Bragança. Perguntou alguem a Calisto se conversava alguma hora com as
musas, ou se, á maneira de Cicero, escrevia o desgracioso:
_Ó fortunatam natam, me consule, Romam_.
Disse o morgado relanceando os olhos a Adelaide, que o seu primeiro
parto metrico apenas tinha de vida quarenta e oito horas, e tão aleijado
saíra, que elle se envergonhava de o offerecer ao apadrinhamento de
pessoas authorisadas.
Instaram damas e cavalheiros pela amostra da obra prima, que certamente
o era, attenta a modestia do poeta.
--São versos, disse elle, que se poderiam mostrar aos quinze annos, e
que seriam derisão e lastima aos quarenta e quatro.
Objectaram as damas argumentando que o homem de quarenta e quatro annos
devia receber as inspirações dos vinte, porque no vigor da edade é que o
coração fulgura em toda a sua luz.
Tregeitou Calisto uns esgaros de satisfação ridicula. Eram os
percursores de alguma enorme necedade.
Embora resistisse á exposição da sua estreada musa, não se conteve que,
despedindo-se de cada uma das senhoras da casa, disse, á puridade, a D.
Adelaide:
--V. ex.^a verá as trovas que só Deus viu, e ninguem mais verá no mundo.
D. Adelaide ficou embaçada. Seria aggravar as meninas de dezoito annos,
e educadas como a filha do desembargador, e amantes como ellas de um
compromettido esposo, estar eu aqui a definir a entranhada zanga que lhe
fez no espirito d'ella o desproposito de Calisto. A estima affectuosa
que lhe ella ganhára, por amor d'aquella cavalheirosa acção, por onde a
paz domestica se restaurára, não teve força de rebater o tedio e o odio
do tom mysterioso do provinciano.
Em quanto ella confiava da irmã o despeito e aversão com que a deixaram
as ultimas palavras de Calisto Eloy, estava elle no seu gabinete
retocando e peorando aquellas linhas rimadas, a cuja rebentação assistiu
o leitor com piedosa tristeza.


XIX
*Ó mulheres!...*

Seguiram-se horas de insomnia. O juizo dava-lhe tratos amarissimos ao
coração. O homem sentava-se na cama, e remechia-se inquieto como se o
escarneo o estivesse picando d'entre a palha do enxergão.
Os intervalos lucidos eram-lhe intervalos do inferno. Os axiomas
classicos sobre o amor caiam-lhe na memoria como chuva de dardos. Quem
mais o suppliciou foi o seu mestre e amigo D. Amador Arraiz. Este santo
bispo apresentou-se-lhe em visão, com D. Theodora Figueirôa ao lado, e
disse-lhe as palavras do capitulo XLV dos _Dialogos_: «Em a lei de
Christo a fidelidade que deve a mulher ao marido, essa mesma deve o
marido á mulher; e, se as leis civis dão mais poder aos maridos que ás
mulheres, não é para as offender e maltratar, nem para um ter mór
jurisdição sobre si que o outro.»
Seguiram-se outras visões de não somenos pavor. Ahi pela madrugada,
Calisto Eloy amodorrou-se em roncado dormir; mas a fada que lhe abrira
os thesouros virgineos do coração, a esbelta Adelaide bateu-lhe com as
azas brancas nas palpebras, e o homem acordou estremunhado a desgrudar
os olhos, que se haviam fechado com duas lagrimas, as primeiras que o
amor lhe esponjára do seio, e cristalisára nos cilios, como diria o dr.
Liborio. Então foi o trabalharem-n'o umas cogitações tão sandias, que
seriam imperdoaveis, se não estivessem na tresloucada natureza de todo
homem que ama.
Entrou a inventariar as alterações que devia fazer no substancial e
accidental da sua personalidade.
O uso do meio grosso pareceu-lhe incompativel com um galan. Aquelles
sibilos da pitada, bem que denotassem espiritos cogitantes e gravidade
de juizo, deviam de toar ingratamente nos ouvidos de Adelaide. De mais
d'isso, a saraivada de bagos de rapé que elle sacudia dos sorvedouros
nasaes, algumas vezes obrigava as damas a formarem sobre os olhos com os
dedos um antemural sanitario contra as insuflações immundas do sabio.
Deliberou, portanto, immolar as delicias pituitarias.
Viu-se no espelho de barbear, modesto utensilio do estojo de bezerro, e
conveio no deslavado prosaismo da sua cara clerical. Resolveu deixar
pera e meia barba, como transição para o bigode, que devia ir-lhe bem na
tez um tanto moreno-pallida.
Como o estudo lhe havia extenuado os olhos, e por amor d'isso usava
oculos de prata quando lia, adoptou a luneta de oiro com molas pensis.
N'este proposito, saiu a delinear as reformas capillares; fez alinhar as
bases de uma cabelleira, que trouxera escadeada da provincia; e
consentiu que lhe encalamistrassem dois topes rebeldes ao ferro.
Depois, quando a ancia de uma pitada começava a importunal-o, fez
provisão de charutos, e fumou o primeiro com afflictivas caretas, e
engulhos de estomago.
Colheu informações dos alfaiates de melhor fama, e foi ao Keil
encommendar duas andainas de fato. O artista offereceu-lhe os figurinos;
e, como lhe fallasse francez, Calisto suppoz que o attencioso alfaiate
lhe dava a conhecer os retratos de alguns sujeitos illustres da França.
Corrido do engano, depois de lêr as indicações das _toilettes_, saiu
d'alli a procurar mestre de linguas, e a comprar diccionarios e guias de
conversação.
Se o leitor, mais perseguido da fortuna esquerda, nunca passou por
lances analogos, não se tenha em conta de desgraçado.
Quem tivesse conhecido, um mez antes, Calisto Eloy de Silos e Benevides
de Barbuda, devia choral-o, quando o viu entrar n'um café a pedir agua
para combater os vomitos provocados pelo charuto!
Irá perder-se aquella alma tão portugueza, aquelle exemplar marido,
aquelle sacerdote e glorificador dos classicos lusitanos?
O amor abrirá no pavimento da camara um alçapão, onde se afunda aquelle
grande brilhante, desluzido, mas promettedor de refulgente lume?
_Di meliora piis_!
Ó Lisboa!...
Ó mulheres!...


XX
*Proh dolor!...*

Adelaide, temerosa de algum imprevisto accidente, que a desmerecesse no
conceito de Vasco, por causa do morgado da Agra, relatou ao pae o
dialogo da antevespera, e a promessa da poesia para a noite seguinte.
O desembargador duvidou do entendimento da filha, antes de acreditar na
insania do seu melhor amigo. Como havia de crer elle no intento
deshonesto de um homem que lhe emergira a outra filha da voragem? E,
crendo, como se comportaria em lanço de tanto melindre?
Meditou, e discretamente resolveu que suas filhas e genro fossem passar
alguma temporada da primavera na sua quinta de Campolide; e se
pretextasse a doença de uma neta, para que a saida se fizesse n'aquelle
mesmo dia. Pôde mais com o velho a gratidão que a offensa.
Calisto Eloy chegou á hora costumada. Já não entrava á presença do
magistrado com a facilidade e lhanesa de outros dias. A sisudeza do
semblante arguia o incommodo da consciencia. Mais lh'a inquietava a
estudada jovialidade, com que Sarmento o recebeu. Antes de perguntar
pelas senhoras, lhe disse o velho o motivo da inopinada saida para ares.
Calisto passou o restante da noite com os amigos da casa; porém,
insolitamente abstraido, concorreu a augmentar a lethargia d'aquelles
velhos soporosos, que pareciam ajuntar-se para se narcotisarem, e
entrarem emparceirados nas silenciosas regiões da morte.
Fez sensação na assembléa tirar Calisto de uma charuteira de prata um
charuto, e baforar columnas de fumo, com uns modos aperalvilhados, e
improprios de sua gravidade. Sarmento, com delicada liberdade, observou
a preponderancia que os costumes de Lisboa iam actuando sobre o animo do
seu bom amigo. Sentiu que os ruins exemplos vingassem quebrantar aquella
admiravel singeleza de trajo e maneiras que o morgado trouxera da sua
provincia. Lamentou que, em menos de tres mezes, o modelo do portuguez
dos bons tempos, se baralhasse com os usos modernos e viciosos.
Calisto Eloy defendeu-se froixamente, allegando que as mudanças
exteriores não faziam implicancia ás faculdades pensantes; e ajuntou
que, sciente de que tinha sido incentivo da mofa entre os seus collegas,
á conta da simpleza um tanto anachronica dos seus costumes, entendera
que a prudencia o mandava viver em Lisboa consoante os costumes de
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