A Queda d'um Anjo: Romance - 04

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Calisto, ao outro dia da primeira noite de esposo, por volta das sete
horas da manhã, já estava a ler a _Viagem á terra santa_, por frei
Pantaleão de Aveiro; e, á mesma hora a noiva andava de pé sobre um catre
de pau preto rendilhado, com uma bassoira de giesta, a limpar teias de
aranha do tecto.
Almoçaram, e foram visitar o pae e o sogro, em cuja casa jantaram.
Durante a visita, a sr.^a D. Theodora esteve a ensinar uma criada a
engommar as camisas do pae; e Calisto, como descobrisse n'um armario um
tratado de alveitaria de 1610, levou-o de um folego, e tirou
apontamentos, visto que o sogro se tratava por aquelle tratado,
diminuindo as doses das drogas. Não sei quem lhe dissera a elle que o
sr. D. João IV, nas doenças graves, se medicava com um veterinario.
Ora, d'este começo de amores infiram v. ex.^as o restante d'aquella doce
vida!
Theodora tomou a cargo os cuidados domesticos de sua sogra, e muitos do
tracto com caseiros, vendo que o marido, tirante as horas de comer, não
saia da livraria, onde a mulher, como amavel sombra, o ia visitar, e
olhando com desdem sobre os infolios, dizia-lhe:
--Ó homem, ainda não acabaste de ler estes missaes?
--Isto não são missaes, rapariga. Não estejas a profanar os meus
classicos.
A esposa não entendia isto, e pedia-lhe que lhe lêsse pela vigesima vez
as _Sete partidas de D. Pedro_. E o bom marido lia-lhe pela vigesima vez
as _Sete partidas_, porque estavam escriptas em portuguez de lei. Vida
para invejar! paraiso em que Deus se esqueceu de mandar o anjo do
montante de fogo vedar a entrada!
Discorreram annos, sem que o morgado tivesse de perguntar á sua
consciencia a explicação do minimo alvoroto de sangue na presença de
mulher estranha. Andava por feiras, quando a mulher o mandava comprar
utensilios agricolas; pernoitava por diversas casas da provincia,
famosas pela belleza das donas, e contava-lhes casos mirificos de suas
leituras, se acontecia não achar livro velho, que lhe deliciasse o
serão.
Da maior, e talvez unica dôr litteraria da sua vida, fui eu causa.
Calisto, pernoitando em não sei que solar de damas dadas á leitura
amena, pediu algum livro, e deram-lhe um romance meu. Consta-me que
deixou o volume com as margens annotadas de gallicismos e nodoas de toda
a casta. Imaginem quantas punhaladas eu dei n'aquelle lusitanissimo
coração!
Afóra este incidente, as boninas da vida campestre floriam
immarcessiveis para o homem de bem, raro exemplo de compostura; salvo
quando lhe beliscavam a estirpe que, então, como já disse, retaliava
descaridosamente, e revelava a quebra contingente de todo homem
imperfeito de sua natureza. Isto creou-lhe inimigos; mas detrahidores de
sua fidelidade marital nenhum tentou infamar-lhe o bom nome. Das
virtudes conjugaes de Theodora até me treme a penna sómente de escrever
isto para encarecel-as! Duvide-se da pureza das onze mil virgens, antes
de maliciar suspeitas d'aquella matrona, em tudo romana, do puro estofo
das Cornelias, Poncias e Arrias.
Com esta pureza de vida entrara em Lisboa o morgado da Agra.
Ahi está um como Daniel á beira da fornalha. Ahi está o homem-anjo!
Quarenta e quatro annos immaculados! Um coração que, se algumas imagens
tem gravadas, são as dos frontispicios apparatosos de alguma edição
princeps, d'algum Elsevir annotado por Grenobio.


XI
*Santas ousadias!*

Natural coisa é que este sujeito, intangivel ás caricias do amor, seja
severo e intolerante com as fragilidades do coração.
Aconteceu-lhe frequentar, uma noite por outra, a sala d'um antigo
desembargador do paço, que era pae de duas galantes senhoras, uma casada
e outra solteira.
Soou aos ouvidos de Calisto Eloy, que uma das illustres damas innodoava
sua gentileza e prosapia, violando os deveres de esposa. Fez-lhe sangrar
o coração honrado tão funesta nova, e communicou elle o seu espanto e
dôr ao collega abbade. O abbade desfechou-lhe na cara uma estrallada de
riso civilisado, e disse-lhe:
--Ora o morgado tem coisas! V. ex.^a parece que caiu, ha pouco, de algum
planeta! Olhe que Lisboa não é Miranda, meu amigo. Se o morgado tem de
espantar-se por cada caso d'estes que chegar ao seu conhecimento, a sua
vida na capital tem de ser um permanente ponto de admiração!... Deixe
correr o mundo...
--Que remedio!--atalhou o morgado--mas o que eu farei é sacudir o pó dos
meus botins á porta das casas, cuja desordem de costumes me escandalisa.
Não voltarei a casa do desembargador Sarmento.
--Faça v. ex.^a o que quizer; porém, consinta que eu reprove similhante
procedimento, por duas razões; seja a primeira, que o desembargador e a
familia receberam o sr. morgado com cordeal affecto; segunda razão, é
que v. ex.^a já não está em edade de perder a sua virtude seduzida por
máos exemplos. Faça como eu: lamente as miserias dos homens, e viva com
elles, sem participar-lhes dos defeitos; porque, meu nobre amigo, se a
gente vae a regeitar as relações das familias, justa ou injustamente
abocanhadas pela maledicencia, a poucos passos não temos quem nos
receba.
--Eu tenho os meus livros, accudiu Calisto.
--E os seus livros, as suas chronicas, os seus classicos gregos e
latinos não lhe contam enormes desmoralisações? V. ex.^a, que leu a vida
romana em Tacito, e Apuleio, e no Festim de Trimalicão de Petronio...
--De qual Petronio?--interrompeu o morgado. Foram doze os Petronios em
Roma, e todos escreveram com mais ou menos despejo.
--Pois melhor. Se v. ex.^a leu doze, eu li um, que era o ecónomo, ou
arbitro dos prazeres de Nero, e este me bastou para edificação do meu
espirito. Pois se o meu amigo póde ler sem horror as infamias das
saturnaes, e os mysterios da deusa Bona, e quejandas protervias dos
antigos tempos, como póde espantar-se do que ouve dizer da filha do
desembargador Sarmento, que a final de contas, póde estar innocente do
crime que lhe assacam?! Não a vê v. ex.^a filha cuidadosa, mãe
estremecida, e esposa honesta na apparencia? Já a ouviu defender theses
da moral do adulterio? Que lhe importa a v. ex.^a o que se passa lá na
vida privada da mulher?
Calisto deteve-se breves instantes com a resposta, e disse:
--Acho-lhe razão, sr. abbade, não tanto pelo que disse, como pelo que
não disse. As pessoas de vida impolluta devem acercar-se d'aquellas que
prevaricam. Lá vem uma hora em que o conselho é taboa salvadora... Quem
sabe se eu terei predestinação de desviar aquella senhora do caminho
máo!?...
--É verdade--assentiu o abbade;--mas é justo e urbano que v. ex.^a não
vá interrogal-a sobre coisas do fôro intimo.
--Não me ensine as leis da cortezia, abbade--replicou algum tanto
affrontado o fidalgo da Agra.--Eu não me fiz em alcatifas de salas; mas
aprendi a policia e trato humano nas lições de galãs afamados como D.
Francisco Manuel. E, demais d'isso, meu caro sr. abbade, não me peça
Deus conta de minha soberba, se lhe eu digo que o bom sangue como que já
tem congeniaes e infusas em si as regras da urbanidade cortezã. Não se
fazem mister directorios de civilidade a sujeitos, que herdam com a
fidalguia a indole de avoengos palacianos, feitos nas côrtes, e affeitos
a sentarem-se na ourella dos thronos.
--Não ponho duvida n'isso;--obtemperou o abbade, e accrescentou com
malicia e bem rebuçada ironia--alguns fidalgos muito mal-creados que
tenho topado, em quanto a mim, não lhes faltou a herança de polidez;
foram elles que propriamente derrancaram sua indole, até se fazerem
plebe grosseira e ignobil.
--Acertadamente--disse o morgado.
--Eu ensinar cortezia a v. ex.^a!--insistiu o deputado bracharense.--A
minha observação tendia a moderar os impulsos descomedidos da sua justa
censura aos máos costumes da sr.^a D. Catharina Sarmento. _Noli esse
multum justum_, diz o Ecclesiastico.[13] Bem fidalgos e policiados eram
S. Domingos de Gusmão, S. Francisco de Borgia, e Santo Ignacio de
Loyola, todavia, bem sabe v. ex.^a com que exempção e santa descortezia
elles invectivavam as corruptelas da mais elevada sociedade, em rosto
dos proprios delinquentes.
--Mas eu não sou apostolo--acudiu Calisto.--Conheço que já não vim a
tempo, nem a missão me condecora.
Assim mesmo, sem desaire das pessoas, hei de pôr a pontaria aos vicios,
e, se poder, influirei pensamentos de emenda ao animo dos viciosos.
N'uma das seguintes noites, foi Calisto ao chá do desembargador
Sarmento. Achou mais abatido e melancholico o antigo magistrado.
Estiveram conversando á puridade sobre o desgosto que revia á face do
hospedeiro ancião. Crê-se que Sarmento lhe dissera que sua filha
Catharina, depois de haver casado por paixão, com cedo se desaviera da
vontade do marido, e este da estima d'ella; de modo que raro dia
deixavam de altercar e renhir por motivos insignificantes. D'isto
resultava a tristeza constante do velho, acrescentada agora com ter-lhe
dito alguem que sua filha andava infamada pela voz publica.
--Ferro penetrante--exclamou o desembargador--que me traspassou este
corpo já fraco, e pendido á campa.
Calisto apertou-o nos braços e clamou:
--Amigo e senhor meu! A desgraça não derrete o aço dos peitos fortes.
Tenha-se v. ex.^a arrimado ao bordão de sua honra, que não hão de
adversidades derribal-o. Aqui me ponho de seu lado, com a fortaleza da
amizade, para, como filho de v. ex.^a e irmão da sr.^a D. Catharina,
minha senhora, tirar a limpo da sugidade da calumnia, se o é, a virtude
d'ella, e o contentamento de v. ex.^a. Aqui vem de molde o repetir as
palavras affectivas do meu dilecto Heitor Pinto, no tractado da
_Tribulação_: «O que eu queria é que a boceta de vossas angustias
estivesse depositada em minhas entranhas, e que os meus bens fossem
vossos, e os vossos males fossem meus.»
Ouvido isto, o desembargador commoveu-se até ás lagrimas, e disse com
mui entranhado affecto:
Quem me dera assim um marido para a minha Adelaide, que n'esta casa
reinaria o socego da virtude! Agora vejo que lá nos escondrijos dos
mattos da provincia se refugiaram as reliquias da honra portugueza!
Ditosa senhora a que avassallou tão honesta alma!
D'ahi a pouco, o morgado da Agra, buscando azo de estar apartado com
Catharina a um canto da sala, e praticando sobre livros perigosos,
rompeu elle n'esta pergunta:
--A sr.^a D. Catharina já leu Homero?
--É romance? disse ella.
--Romance ou fabulado de alta moral lhe havemos de chamar; não já
romances d'uns que, de oitiva o sei, por ahi impestam a sociedade. Na
Iliada de Homero achei dois pares de casados; um é Paris, que se
matrimoniou com Helena; o outro é Ulysses, que se casou com Peneloppe.
Os primeiros, cubiçosos e voluptuarios, cobriram a Grecia de
calamidades; os segundos, prudentes e discretos, foram o modelo do
thalamo ditoso.
Fez Calisto uma longa pausa, e proseguiu, interpollando os dizeres com
algumas pitadas, que solemnisavam a gravidade das fallas.
--Ninguem devera casar sem muito lêr e sem applaudir aquelles preceitos
do casamento, escriptos pelo eminentissimo Plutarcho.
--Não conheço, disse a dama... Li _Le mariage_, de Balzac.
--Não sei quem é: deve ser francez.
--Pois não leu?
--Eu não leio francez. Não me chega o meu tempo para tirar aguas sujas
de poços infectos. Plutarcho é oraculo n'esta materia. Um pensamento lhe
li que me chegou á medula, e que ainda agora em Lisboa me saiu
explicado. Diz elle algures. «Não podem as mulheres convencer-se de que
Pasiphae, bem que esposa d'um rei, se enamorasse apaixonadamente de um
touro; ao passo que estão vendo, sem espanto, mulheres que menospresam
maridos benemeritos e honrados, e se dedicam a homens bestificados pela
libertinagem.» Asseveram-me os pilotos peritos n'estes mares verdes e
aparcellados da capital, que ha d'isto muito por aqui.
--É possivel... balbuciou D. Catharina.
--E porque não ha de ser, se algumas senhoras conheço eu casadas, tornou
Calisto, que andam com os braços nus fóra das alcovas do seu leito
nupcial!...
--E isso que tem?--atalhou a dama--é a moda...
--A moda, que franqueia as portas aos ruins desejos, ás cogitações
viciosas, aos afrontamentos, ao pudor. Aquella filha de Pytagoras, a
quem encareceram o feitio do braço, respondeu: «Bello é; mas não para
ser visto». Na Andromacha de Euripedes, Hermion exclama:
«Infelicitei-me, consentindo que de mim se achegassem mulheres
preversas.» Quantas damas de hoje em dia poderão dizer, e na consciencia
o estarão dizendo: Consenti, para minha desgraça, que preversos homens
convisinhassem de mim!...
--Mas onde quer v. ex.^a chegar com o seu discurso? interrompeu a filha
do desembargador.
--Á razão da sr.^a D. Catharina, minha senhora.
--Como assim?! quem o auctorisa...
--As lagrimas de seu ex.^{mo} pae.
--Veja lá, sr. Barbuda, que se não equivocasse com as lagrimas de meu
pae... A minha reputação e costumes repellem similhantes allusões, se o
são.
--Peores do que estas, sr.^a D. Catharina, minha senhora, peores
referencias do que estas lhe faz a voz do mundo.
--A mim?
--Á fé! que sim! Dou-lhe em penhor da verdade a minha honra.
--Mas--interrogou irada e rubra de despeito a dama--que ousadia a de v.
ex.^a fallar assim a uma senhora, que apenas conhece!... Olhe que essas
liberdades de provincia não se usam cá em Lisboa.
--Não se moleste assim, minha senhora--tornou Calisto.--Respeito tanto
v. ex.^a quanto estimo seu venerando pae. O atrevimento é grande, maior
será a magnanimidade de v. ex.^a em perdoar-m'o. Lagrimas de velho e de
pae dão estranho ousio. Desgraças sobranceiras incutem alentos
destemidos nas mais fracas almas. No proposito de conjurar a tormenta,
que se encapella e ameaça de sossobrar a felicidade de uma familia
illustre, é que eu, sr.^a D. Catharina, me affoitei a ser o advogado
espontaneo do bem de todos.
--Agradeço o zelo; mas agradecera-lhe mais a discrição--disse D.
Catharina; e, retirando-se, fez uma ceremoniosa mesura a Calisto.
Não voltou mais á sala a dama. O desembargador não desfitava olhos de
Calisto Eloy, que se assentou meditativo no mais assombrado do recinto.
Erguera-se do voltarete o abbade de Estevães, e abeirou-se d'elle,
dizendo:
--Desconfiei que v. ex.^a estava missionando a dama... Amolleceu-a?
Calisto ergueu a fronte, enclavinhou os dedos das mãos sobre o peito
consternado, e murmurou:
--Agora acabo de entender o meu padre Manuel Bernardes.
E repetiu em tom cavo:
«...Converto minha attenção, e temor a ti ó Lisboa, Lisboa, considerando
o que em ti passa. Medo me fazem tuas corrupções tão graves e tão
devassas, que já o lançar-t'as em rosto, não seja nos zelosos falta de
prudencia, senão obra de magua.»
Depois, suspirou, e cheirou rapé.


XII
*O anjo custodio*

Santa audacia! Bizarra indole de antigo cavalleiro, que abriga no peito
a generosidade com que os heroes dos Lobeiras, Barros, e Moraes se
lançavam ás aventurosas lides, no intento de corrigir vicios e
indireitar as tortuosidades da humana maldade!
Não desanimou Calisto Eloy, tão desabridamente rebatido por D. Catharina
Sarmento.
Averiguou quem fosse o galan d'aquella cega dama, e facilmente lh'o
nomearam. Era um gentil moço, ouzeiro e vezeiro de similhantes baldas,
enfatuado d'ellas, e respondendo por si com sabre ou florete, quando
gente intromettida em vidas alheias lhe fallava á mão.
O informador do morgado esplanou diffusamente as qualidades do sujeito,
relatando as victimas, e os acutilados na defeza d'ellas.
Occorreu á memoria de Calisto aquella apostolica e heroica intrepidez de
fr. Bartholomeu dos Martyres, quando foi a defrontar-se com um criminoso
e façanhudo balio, que promettia engulir o arcebispo de Braga, e o
collegio dos cardeaes com o proprio papa, se necessario fosse! Grande
coisa é ter lido os bons classicos, se desejamos saber a lingua
portugueza, e crear alentos para atacar velhacos!
Ahi vae o esforçado Calisto Eloy de Silos em demanda de D. Bruno de
Mascarenhas. Um escudeiro annuncia ao fidalgo um ratazana.
--Quem é um ratazana?--pergunta D. Bruno.
É um sujeitorio, diz o criado, vestido ratonamente, e não diz o nome,
porque v. ex.^a o não conhece.
--Que quer elle?
--Fallar com v. ex.^a
Vae perguntar-lhe quem é, d'onde vem, e que quer.
Interrogou o criado com máo semblante o morgado.
Calisto escreveu n'uma pagina rasgada da carteira, e perguntou ao criado
se sabia lêr. Disse que não o interrogado.
--Pois entrega esse papel a s. ex.^a
D. Bruno leu, meditou algum espaço, e perguntou:
--Sabes se em casa do desembargador Sarmento ha algum criado chamado
Custodio?
--Não, senhor, não havia até hontem; só se entrou hoje.
--Esse homem que ahi está dá ares de criado?
--Não, senhor: é assim um jarreta vestido á antiga, com uma gravata que
parece um colete.
--Manda-o entrar para aqui.
D. Bruno releu a linha escripta a lapis, e disse entre si:
--Que Custodio é este!?
N'isto, assomou Calisto Eloy.
Bruno de Mascarenhas adiantou-se a recebel-o, e disse-lhe maravilhado.
--Eu já tive a honra de comprimentar v. ex.^a no escriptorio da _Nação_.
V. ex.^a é o sr. Calisto Eloy de Barbuda.
--Sou, e agora me recordo que já tive o prazer de o encontrar...
--Mas v. ex.^a n'este bilhete diz que é Custodio!--tornou Bruno.
--Custodio, que é sinonymo de anjo-da-guarda, ou anjo-custodio da
ex.^{ma} sr.^a D. Catharina Sarmento.
Abriu o moço a bôcca, e disse:
--Ah... agora é que eu entendi... Mas... queira v. ex.^a sentar-se... Eu
não sei que allusão possa ser esta... que... a respeito de...
Calisto sentou-se, estendeu o braço direito com a mão aberta, e atalhou
o enleio de Bruno, dizendo solemnemente:
--Vou fallar.
E, apoz curta pausa, relanceou discretamente os olhos á porta, como quem
receia ser ouvido.
--Póde v. ex.^a fallar, que eu fecho a porta, disse o confuso
Mascarenhas.
--O sr. Bruno de Mascarenhas--proseguiu o morgado--é solteiro. Cedo ou
tarde ha de ser casado, por que é varão de preclarissima linhagem, e
duas forças invenciveis hão de compellil-o a propagar-se: o sentimento
congenito da especie, e a gloria, que vangloria não é, da prosecução da
raça.
(Este exordio abrupto invencilhou os espiritos de D. Bruno, os quaes
eram pouco entendidos em estylo garrafal.)
Façamos de conta--proseguiu Calisto--que v. ex.^a é hoje, como será,
volvidos mezes ou annos, casado com uma dama egual em sangue, de honrada
fama, acatada do conceito geral, dama emfim, na qual v. ex.^a empregou
suas complacencias todas. Á boa dita de esposo succede-lhe a
prosperidade de pae. Vê v. ex.^a em redor de si umas alegres
creancinhas, que o beijam e o furtam com graciosas blandicias ás graves
cogitações dos negocios, e aos aborrimentos que salteam as existencias
mais descuidadas e desprendidas. A mãe dos filhinhos de v. ex.^a é o
cofre de oiro: as creanças são as joias inestimaveis que v. ex.^a lá
encontrou e lá encerra.
A mãe é a flôr, os filhos são o fructo. V. ex.^a arde de amores d'elles
e d'ella. Por que a sua familia é não sómente a sua alegria domestica,
senão que lhe é fóra de casa um pregão da honestidade e honra que vae
n'ella.
De repente, quando v. ex.^a está meditando nos jubilos da velhice, com
seus filhos já homens, com sua esposa laureada pelas cans sem macula, de
repente, digo, ha um amigo em lagrimas, ou um inimigo secretamente
satisfeito, que, lhe diz: «Tua mulher deshonra-te; essas creanças, que
tu affagas, e para quem estás multiplicando os teus haveres, podem não
ser teus filhos, por que tua mulher prevaricou.» Pergunto eu ao ex.^{mo}
Bruno de Mascarenhas: a sua agonia, n'essa hora de atroz revelação, como
hão de expressal-a os que a não sentiram ainda?
--Não sei...--respondeu Bruno--Só, no caso de se darem as circumstancias
que v. ex.^a diz, é que se póde responder.
--Todavia, o seu entendimento e coração, já antes da experiencia, podem
antever qual deva ser a agonia do marido deshonrado pela ignominia de
sua mulher...
--Sim...
--Até aqui a hypothese em v. ex.^a: agora o exemplo em Duarte de
Malafaya, marido de D. Catharina Sarmento. Duarte era rico, e dos mais
fidalgos; por excesso de amor casou com D. Catharina, filha de um
nobilissimo cavalheiro, porém magistrado empobrecido pelos desconcertos
da politica. Duarte entrou n'aquella casa, restaurou a decencia antiga,
e encostou ao seio as cans do magistrado octogenario, assegurando-lhe o
socego e contentamentos dos annos ultimos da vida.
Decorridos cinco annos, Duarte tem cinco filhos. São anjos que descem a
povoar o paraiso d'aquella ditosa familia. Brincam á volta de sua mãe, e
como que lhe estão dando os alegres emboras da felicidade que elle está
gosando, e lhe augura a elles.
É n'este ensejo que o inferno se abre aos pés d'esta familia honrada e
ditosa. Surge das tenebrosas agonias um homem que despedaça ás mãos os
laços humanos e divinos da santa união do velho, da filha, do genro, e
dos netos. Ora, o homem que os assaltou no seu eden, foi o sr. D. Bruno
de Mascarenhas.
--Eu!...--exclamou o moço com artificial espanto.
--V. ex.^a. Vejo-o admirado, não sei se da minha affoitesa, se da
responsabilidade que lhe pesa, sr. D. Bruno!
--Mas que houve em casa do Sarmento?--perguntou alvoroçado o fidalgo.
--O que eu antes de hontem vi foi a face do ancião lavada de lagrimas. O
que eu vi hontem á noite foi Duarte de Malafaya fitar os olhos nas
creancinhas, e escondel-os para que o não vissem chorar. O que hoje
verei em casa do desembargador Sarmento, se v. ex.^a o não presagia...
Não temos tempo para conjecturas: a chaga deve ser cauterisada já, para
não ser gangrena ámanhã. Quer v. ex.^a ajudar-me a conjurar a nuvem
negra que vae rasgar-se em torrentes de desgraças?
D. Bruno reflectiu dois segundos, como se houvesse pejo de responder, no
primeiro instante:
--Da melhor vontade. Eu desisto d'estas relações, para evitar desgostos
serios á sr.^a D. Catharina.
--Falla-me um honrado portuguez, que tem o appellido dos Mascarenhas?
perguntou com solemnidade o Barbuda.
--Juro pela honra de meus avós.
--Que vae fazer v. ex.^a?--tornou Calisto.
--Antecipo um passeio que mais tarde tencionava fazer á Europa. Parto no
paquete de ámanhã para França.
--Sem dizer, nem fazer saber á sr.^a D. Catharina que esteve aqui um
amigo do desembargador Sarmento...
--Nada direi sr. Barbuda.
--Aperto-lhe e beijo esta mão. Agradeço-lh'o em nome dos cinco filhos de
Duarte de Malafaya, ou dos cinco anjos que lhe chamam pae.
--E saíu com os olhos marejados.
* * * * *
D. Bruno cumpriu a promessa com tanta pontualidade como o faria um
sujeito de menos fidalgos brios, se lhe dissessem: «Afasta-te, se não
queres o encargo de amparar uma familia, cujo esteio estás quebrando.»
É coisa que pouquissimo custa, em condições analogas, o ser pontual. Ás
vezes, até se vinga fama de prudente e ajuizado.
Como quer que fosse Calisto Eloy foi d'alli em direitura á poltrona do
magistrado, e disse-lhe:
--Cobre animo, amigo e senhor meu. O inimigo levantou o cerco. A
maledicencia descaridosa, se não mudar de juizo, esquece-se.
Seguiu-se a narrativa do acontecido, e as alegrias do ancião
interpolladas de agradecidas lagrimas.


XIII
*Regeneração*

Ó coração sensivel! ó peccadora Catharina, que vaes agora expiar o teu
crime nas agonias da saudade! Aquelle Calisto, cuidando que te salvava,
matou-te!
Não foi tanto quanto diz a apostrophe; mas, de feito, Catharina, quando
recebeu de Bruno de Mascarenhas uma carta saturada de sãs doutrinas e
reflexões, como as faria S. Francisco de Salles a mad. du Chantal,
entendeu de si para comsigo que devia morrer de despeito e raiva. O
fugitivo escrevia-lhe pouco antes de embarcar-se. Não referia o dialogo
com Calisto; dava porém como certa uma tempestade a prumo das cabeças
d'elles delinquentes. «Irei, dizia elle, morrer longe da mulher que amo,
para lhe não sacrificar os creditos e os filhos. Se souberes que eu
morri, recompensa-me esta virtude rara, dizendo em tua consciencia que
eu te amei, como já ninguem ama sobre a face da terra.»
Depois, seguiam-se na carta os conselhos ajustados á felicidade da vida.
Expunha as consequencias funestas das paixões. E terminava dizendo que
as lagrimas o não deixavam continuar.
Que dama resistiria, depois d'isto, á morte?
Encerrou-se a filha do desembargador, no intento de providenciar em
artigo de morte, e entrouxar para a eternidade.
N'estas cogitações a surprehendeu a mana Adelaide, mostrando-lhe uma
carta de um certo Vasco da Cunha, que escrevia desde muito, e
honestamente a menina solteira, no proposito de casamento. Este Vasco,
de boa linhagem, conhecia Bruno, e via com desprazer os amores da dama,
que havia de ser sua cunhada. Eventualmente soubera elle do embarque do
Mascarenhas. Pessoas que o viram a bordo, referiram-lhe que o sujeito,
perguntado ácerca dos amores de Catharina Malafaya, respondera
fatuamente que se ia escapando a um aguaceiro de escandalos, com que
elle não queria brincar, por que a mulher, enthusiasta e apaixonada mais
que o necessario, seria capaz de o fazer assumir as funcções de marido
não canonico.
Pouco mais ou menos, era d'aquella amavel contextura o periodo que D.
Adelaide leu a sua irmã lagrimosa.
D. Catharina levantou-se com fidalgos brios, chamou pelos filhos,
abraçou-se n'elles, e disse á irmã:
--Estou bem! Deus me perdoará, rogado por estes innocentes. Meu amado
marido, como eu te quero hoje! como eu sinto o teu coração a consolar-me
n'estes remorsos!...
Ora, eu não tenho a caridade de crêr nos remorsos de D. Catharina; mas
piamente acredito que a mulher se estava sentindo mais amiga do marido,
fineza que elle devia agradecer-lhe com as suas mais melifluas caricias.
E veiu logo a succeder que o esposo, surprehendido pela extremosa
ternura da senhora, estranhou o caso, e requereu brandamente a
explicação da improvisa mudança. Catharina, imaginosa como todas as
pessoas que amam muito, explicou, entre alegre e lagrimante, que a final
se convencera de que o seu Duarte a não trahia: suspeita de tanta força
para ella, que podéra empeçonhar, com as serpes do ciume, a felicidade
de duas almas, ligadas por paixão.
Duarte ficou lisongeado e satisfeito. Seguiu-se confessar elle tambem as
suas vagas desconfianças emquanto á lealdade da esposa. Aqui é que foi a
scena, digna de mais conspicuo narrador. A offendida senhora pregou os
olhos no firmamento de madeira, espreitou por elle o azul do empyreo,
com a dupla vista que dá a angustia, e murmurou:
--Céos! que injustiça!
Era dôr que lhe encolhia os folipos das lagrimas. Não arranjou a chorar.
Caíu de golpe na poltrona de mais capacidade e flacidez para quedas
d'aquella natureza! e, tapando a face com as mãos alvissimas, balbuciou,
desentallando-se dos suspiros:
--Oh! que infeliz! que infeliz!
Duarte inclinou-se com os labios ao colo de Catharina, e disse
affectuosamente:
--Perdoemos um ao outro. Estes ciumes reciprocos dizem que nos amavamos
por egual.
Não queria a magoada senhora perdoar; porém, como lhe faltasse fôlego de
despejo para sustentar a scena, envergonhou-se de si mesma, e teve dó do
marido, a quem ella, e pae, e irmã, deviam a decencia, estado,
representação e sociabilidade com as primeiras familias de Lisboa.
Instantes foram estes de consciencia rehabilitada, que poderam muito com
ella no decurso da vida, e promettem ser-lhe amparo até ao fim.
É-me pequeno o peito para o prazer que sinto, relatando este caso, que é
unico dos meus apontamentos, em egualdade de circumstancias. Ainda ha
gente boa e de muitissima virtude: isto é que é verdade.
O fautor d'este successo, com que a gente se consola, foi, sem debate,
Calisto Eloy, aquelle anjo!
Com que delicias d'alma contemplava elle a restaurada ventura d'aquelles
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