A Queda d'um Anjo: Romance - 03

Total number of words is 4627
Total number of unique words is 1885
30.8 of words are in the 2000 most common words
42.4 of words are in the 5000 most common words
49.2 of words are in the 8000 most common words
Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
o deixavam e se passavam á Rainha, como fez Vasco Porcalho, e Martim
Annes de Barbuda, commendadores de sua ordem, e Garcia Peres Craveiro de
Alcantara, que para elle se viera.»
O conde entregou a chronica, e disse n'um tom de abborrido e confuso:
--E então?
--É v. ex.^a da progenie d'esse Barbuda infamado na pagina eterna de
Duarte Nunes?
--Sou--respondeu ufanamente.
--Pois vá em paz, que eu não procedo d'esses Barbudas. Eu sou o decimo
sexto varão de Gonçalo Pero de Barbuda, que morreu em Aljubarrota, na
ala dos namorados. Gonçalo era irmão de Martim: mas, ao entrar na
batalha, pediu a D. João I que lhe legitimasse um filho natural, para
que, no caso d'elle perecer, os filhos do irmão trêdo lhe não manchassem
o solar. Gonçalo, morreu e D. João I cumpriu a vontade do portuguez de
lei.
--O que d'ahi infiro--disse sarcasticamente o conde--é que v. ex.^a
procede de um filho natural.
--A mãe do filho natural era abbadessa de Vairão, da familia dos
Alvins--redarguiu triumphantemente Calisto.
--Coito damnado!--retorquiu o conde.
--Discutamos esses pontos graves--voltou serenamente o morgado da Agra,
tomando rapé.--A decima segunda avó de v. ex.^a Jeronyma Talha, era
judia de Cezimbra, e esteve como covilheira dos sobrinhos de um Heitor
de Barbuda com quem casou. Sua tresavó enviuvou sem filhos e casou com
um filho do capellão. D'este matrimonio nasceu seu avô Luiz de Almeida
de Barbuda, que foi o primeiro conde do Reguengo. Reconciliemo-nos, sr.
conde, em quanto ao sangue de coito damnado, se v. ex.^a quer emparelhar
o filho do padre com a abbadessa de Vairão, tia da mulher de Nuno
Alvares Pereira por Alvins.
O conde ergueu-se accendido em raiva, e disse:
--No que não podemos emparelhar, sr. Calisto, é na tolice. Vou-me
embora, com a vergonha de ter aqui vindo.
--Não vá, acudiu Calisto Eloy, que eu é que me hei de forrar á vergonha
de dizer que v. ex.^a veiu cá.
E, passando a penna de ferro na pagina da chronica, rasgou a linha que
dizia _Martim Annes de Barbuda_.


VIII
*Faz rir o parlamento*

Andava o animo de Calisto Eloy martellado pelo desejo de pôr cobro ao
luxo da gente de Lisboa, sendo grande parte n'este intento o haverem-lhe
os dois pisa-verdes do parlamento mettido a riso a sua casaca de briche.
Impugnavam-lhe a idéa o abbade de Estevães, e outros correligionarios
cordatos, mais entrados do espirito do seculo, e convencidos da
inutilidade de atravessar represas á torrente caudal da indole de cada
época. O deputado de Miranda respondia que viera de sua terra a
cauterisar as chagas do corpo social, e não a cobril-as de pachos e
lenimentos palliativos em respeito á sensibilidade dos doentes. Rebelde
ás admoestações sisudas de amigos, que lhe receavam alguma queda mortal
no conceito da camara, Calisto, provocado por um debate sobre importação
e direitos de objectos de luxo, pediu a palavra, e o mesmo foi alvorotar
alegremente a camara, desejosa de ouvil-o.
Concedida a palavra, e feito o silencio da curiosidade na sala,
ergueu-se o morgado da Agra, e orou d'este feitio:
--Sr. presidente! Os conselheiros dos antigos reis de Portugal, homens
de claro juizo e sciencia bastante, cortavam os abusos do luxo com
pragmaticas, quando os vassallos se desmandavam em trajos, regalos e
ostentações ruinosas do individuo, e, portanto, da cidade. O senhor rei
D. Sebastião, que santa memoria haja, promulgou justas e rigorosas leis
sobre o uso das sedas. E, n'aquelle tempo, sr. presidente, Portugal
ainda se banqueteava com a baixella d'oiro do Pegu: ainda as paredes das
salas nobres estavam colgadas de gualdamecins e razes da Persia. Era o
Portugal, já não robusto nem enthusiasta; mas ainda sopitado das
embriagadoras delicias dos reinados de D. Manuel e D. João III.
Nas Ordenações Filippinas, liv. 5.^o t. 82, § 4.^o, e seguintes, foram
incluidas as principaes leis da reformação da justiça de 27 de julho de
1582.
Lá se vê quão salutar era a vara ferrea da lei no castigo dos contumazes
em proveito da communidade. (_Um deputado boceja contagiosamente: outros
bocejam; e o presidente de ministros adormece_). Vejamos a pena dos
infractores: o peão perdia o vestido defezo, e pagava da cadeia quinze
cruzados; e o nobre pagava da cadeia mais quinze cruzados que o plebeu.
Note a camara que as reformas liberaes não complanaram tanto a egualdade
entre poderoso e fraco. Bradam por ahi os ignaros contra os privilegios
e exempções da fidalguia dos tempos ominosos. Estes democratas, se
acontece de cairem nas presas da justiça, gritam pelo codigo das
egualdades, e então experimentam o que vae da bonita redacção da lei á
execução d'ella. Recolho-me ao assumpto, sr. presidente....
_Um deputado_: Faz bem.
_O orador_: Não me lisongea o beneplacito do collega. Recolho-me ao
assumpto, sr. presidente. Lastimo este luxo que vejo em Lisboa! Por toda
a parte, oiro, pedrarias, sedas, veludos, pompas, vaidades! Parece que
toda esta gente voltou hontem da India nas naus que trouxeram as parias
do Oriente! Essas ruas estrondeiam de carroagens, calechas e berlindas,
como se cada dia se estivesse commemorando a passagem do cabo
tormentorio ou o descobrimento da terra de Santa Cruz, atirando ás
rebalinhas os thesouros que de lá nos vem. Por entre estas soberbas
carroças...
_Um deputado_: Carroças são de lixo.
_O orador_: E bem póde ser que seja lixo o que vae n'ellas... Por entre
estas soberbas carroças, sr. presidente, vejo eu passar mal arrimados ás
paredes, e temerosos de serem esmagados, uns homens de aspecto
melancholico, e mal entrajados. N'estes cuido eu vêr D. João de Castro,
que empenhou as barbas, e tem duas arvores em Cintra; Duarte Pacheco,
que vae entrar no hospital; e Luiz de Camões que vem de comer as sopas
dos frades de S. Domingos. Cada época tem centenares d'estas illustres
victimas.
_Um deputado_: Vê coisas magnificas!
_O orador_: E tambem vejo o dedo do propheta escrevendo na parede o
lemma d'aquelle devasso festim... (_Pausa. O orador conserva o braço em
postura sculptural, apontando á parede. O presidente accorda
estremunhado, com a risada do ministro da fazenda_). O que eu vejo? quer
o illustre deputado saber o que eu vejo? É a industria agricola de
Portugal devorada pelas fabricas do estrangeiro; é o braço do artifice
nacional alugado á escravidão do Brazil, porque a patria não lhe dá
fabricas; é o funccionario publico prevaricado, corrupto e ladrão,
porque os ordenados lhe não abastam ao luxo em que se desbarata; é o
julgador dos vicios e crimes sociaes transigindo com os criminosos
ricos, para poder correr parelhas com elles em regalias; é a mulher de
baixa condição prostituida, para poder realçar pelos ornatos sua
belleza; é a alluvião de homens, inhabeis, que rompe contra os
reposteiros das secretarias pedindo empregos, e conjurando nas
revoluções se lh'os não dão. O que eu vejo, sr. presidente, são sete
abysmos, e á bocca de cada um o rotulo dos sete peccados capitaes que
assolaram Babylonia, Cartago, Thebas, Roma, Tyro, etc. É o luxo, sr.
presidente!
_Um deputado do Porto_:--Peço a palavra.
_O orador continuando_:
--De que desconhecida lua choveu ouro sobre estes paraltas enluvados e
encalamistrados que pejam os theatros, praças, e botequins de Lisboa?
Foi para estes tempos que um sabio e claro varão d'outro seculo
escreveu: «Desde o bico do pé até á cabeça anda um d'estes cavalheiros
bizarros (ou qualquer d'estes bizarros ainda que não sejam cavalheiros)
armado de vaidade e de estudos de sua compostura, que são captiveiros de
espirito, corrupções dos costumes, da republica, e despezas da sua
fazenda, ou talvez da fazenda que não é sua.»
Aqui é que bate o ponto: _da fazenda que não é sua_. Á custa de quem se
vestem estes Narcisos e Adonis? Que incognitos veios de ouro exploram?
Qual é sua arte, se não devo antes perguntar quaes sejam suas manhas ou
ronhas? Que sabe a policia d'elles?
E eu já vi, sr. presidente, andarem as senhorias e excellencias, as
pobres esfarrapadinhas, por meio d'estes peralvilhos, que saem de casa
do alfayate com o fôro grande e o desaforo maior. Que desbarato e
corruptela é esta dos tratamentos em Lisboa? Abandalha-se tudo para
passar a rasoira por sobre um lamaçal plano? Isso é congruente; mas
então tapem lá o rôto cofre das graças, que a toda hora nos está
despejando corôas e veneras, cruzes e mais cruzes, cruzes onde a honra
de Portugal geme cravejada! Fechem lá esses decretos de permanente
carnaval, que nos trazem sempre acotovellados com mascaras, que eram
hontem os nossos fornecedores de bacalhau, e hoje nos não conhecem a
nós, receiosos de que os conheçamos a elles!
Sr. presidente! v. ex.^a conhece a pragmatica do Sr. D. João V, ácerca
de tratamentos. Eu tenho de a ler ámanhã a um tendeiro, que me vendeu
figos de comadre, por que o homem se offendeu de receber um _vossemecê_,
que eu longanimamente lhe dei. O alvará resa assim: «Que aos viscondes e
barões, aos officiaes da minha casa, e aos das casas das rainhas, e
princezas d'estes reinos; aos gentis-homens das camaras dos infantes;
aos filhos e filhas legitimos dos grandes, dos viscondes e barões...
como tambem aos moços fidalgos... se dê o tratamento de senhoria.»
Senhoria aos ministros no estrangeiro; senhoria aos governadores das
praças; reitor da universidade; senhorias ás dignidades prelaciaes e
civis; sr. presidente, falta uma senhoria legal para o homem, que me
vendeu os figos. Creêmos esta senhoria, para alliviarmos de escrupulos
os que lh'a derem a medo. Legislemos a podridão dos tratamentos
nobilitarios. Atiremos ao esterquilinio com esta moeda refece. Isto já
não vale nada, não prova nada, não estrema coisa nenhuma. Latissima
licença de condecorar-se a gentalha! Se algum mesteiral, uma vez,
praticar feito nobre, que lhe conquiste justo galardão, havemos de
honral-o chamando-lhe homem do povo, d'aquella raça de povo, que D.
Diniz e D. João I amaram cordialmente.
Desviei-me algum tanto, sr. presidente. Vou chegar-me á questão, e
concluir, porque a hora me não permitte delongas, nem a camara terá a
benevolencia de m'as tolerar.
Invoco a attenção dos representantes do paiz para a mortal peçonha, que
vae cancerando o machismo vital da nossa independencia. Rédeas ao luxo!
Tranquem-se as alfandegas ás drogas estrangeiras. Carreguem-se de
direitos as mercadorias, que incitam o appetite e prevertem as condições
melhormente morigeradas. Vistamo-nos do que podemos colher de nossas
possessões, e do estofo, que nossas fabricas podem dar. Sigam-se as leis
velhas do ultimo rei da dynastia de Aviz. Coimem-se e castiguem-se os
que venderem tecidos estrangeiros e os que os puzerem em obra.
_Um deputado_: Como redigirá o illustre deputado similhante absurdo de
lei?
_O orador_: Como redigirei? Facilmente. Como D. João II legislou a
respeito das mulas dos frades. Ora aconteceu que os frades teimaram em
cavalgar mulas. Que fez então o estomagado rei? Deu sentença de morte
aos ferradores, que ferrassem as mulas dos frades. E o caso foi que os
desmontou.
Conclui, sr. presidente.
_O presidente_: Fica reservada para amanhã a palavra ao sr. dr. Liborio
de Meirelles, e está fechada a sessão.
O dr. Liborio de Meirelles era o deputado portuense, que pedira a
palavra, durante o discurso de Calisto Eloy.
--Que sairá d'aquelle arganaz?--perguntou o morgado de Agra ao abbade de
Estevães.
--Dizem que é moço de muita sabedoria, e que já escreveu livros.
Calisto sorriu-se e disse:
--Estou bem aviado, se elle escreveu livros!


IX
*O doutor do Porto*

O dr. Liborio de Meirelles, sujeito de trinta e dois annos, cara
honesta, e posturas contemplativas, reunia os predicados que nos outros
paizes ou passam despercebidos, ou são solemnisados pela irrisão
publica; mas, em Portugal, taes predicados alçam o homem ao cume da
escala politica, e dão-lhe escolta de absurdos propicios até onde o
parvo laureado quer guindar-se.
Esta pessoa madrugou aos dezoito annos escrevendo poemas satyricos
contra os titulares portuenses, não porque elle se pejasse de vel-os em
sua plana, mas porque lhe fugiram d'ella. O progenitor de Liborio era um
tendeiro, que entrara na estrada franca da fortuna prospera, creando de
sua cabeça, para uso de gallegos e carretões madrugadores, um mixto
saboroso e alcalino de licores, que ainda hoje sustentam o credito e
primasia. Afóra isto, inventara o pae do dr. a aguardente de nabos.
Liborio foi menos feliz que o pae, no genero a que se dedicou. Os seus
poemas viveram alguns dias afagados pela calumnia, como a belleza das
collarejas lisongeada pelo rosto derrancado dos libertinos. Depois, o
filho do tendeiro, graças á baixesa de sua posição social, antes de
grangear o odio dos insultados, já tinha caido no desprezo d'elles.
Impellido pelo couce do pégaso, Liborio já não podia retroceder. Foi
para Coimbra: fez-se examinar em latim, e foi reprovado. Desde este
funesto dia de sua vida, Liborio começou a dizer que era sabio, e, por
vingança dos examinadores, traduziu um poema latino com tanta claresa e
fidelidade, que o poema original ficou sendo muito mais intelligivel aos
ignorantes de latim, do que a versão; com que a memoria de Lucrecio fôra
ultrajada.
Formou-se e doutorou-se Liborio, sem impedimento de uns _rr_ que, alguma
vez, lhe acalcanharam o orgulho. Em seguida foi visitar a Europa; e, de
volta aos lares, achou-se no regaço da estupida fortuna que o beijou, na
fronte, e lhe disse: «este anhelito de meus beiços côa-te fogo ao
cerebro! Amo-te, porque careço de ti. Eu sou a Circe dos gregos:
bestifico tudo que toco, e em ti delego o condão de radiares tua
bestidade ao cerebro de quem embarrar por ti. Proponho-me transfigurar,
não já em cochinos, mas em mais nobres alimarias, os regedores da coisa
publica de Portugal. Tu, dilecto, vae caminho da gloria. Hoje és
deputado; d'aqui a pouco serás ministro.»
De feito, Liborio estava deputado, á mesma hora em que o fidalgo da Agra
de Freimas era fadado a ser um dia verberado no parlamento pelo filho do
inventor da aguardente de nabos.
Calisto entrou á sala, e, digamol-o com espanto de sua fleuma, ia
tranquillo e até contente, sem embargo de lhe haverem dito alguns
collegas quão funesto era o contendor que a sua má sorte e imprudencia
lhe deparara.
O dr. Liborio, dada a palavra, ergueu-se com ademanes não vulgares,
alisou os bigodes, encravou na orbita esquerda um vidro sem grau, e
disse:
--Sr. presidente, discorri cêrca d'anno por estranhas plagas. Fui-me
mundo fóra com o meu bordão e concha de romeiro do progredimento social.
Bebi a tragos nas enchentes de mel hybleú que desborda dos mananciaes da
civilisação. Vi muito, vi tudo, que me abraseavam sedes de aprender,
fomes de Ugolino que rompe seus ferros, e se defronta com lautos
estendaes de loirejantes iguarias. Que deliquios de exultação me tomavam
alma! como eu me sentia a tragar luz e humanidade por aquelles climas
onde o supremo architecto chove inventos a frouxo e a flux! Vi muito, e
vi tudo, sr. presidente. Encheu-se-me o peito de anhelos pela sorte da
patria, e d'amores muito seus d'ella, como de filho que do imo das
entranhas lhe quer. Volvi-me no rumo do ninho meu; e mal se enrubesceram
os horisontes d'esta minha e tão nossa terra de fragrancias e idyllios,
assim me coou as fibras do seio um como filtro de melancholia, que me
subia aos olhos exsudando lagrimas.
(_Calisto Eloy, em perigo de rebentar, ri-se. Parte da camara ciciou-lhe
um sio prolongado. Calisto accommoda-se e desconfia que a maior parte da
camara é tola_).
_O orador_: É que eu, sr. presidente, muito a dentro d'alma sentia uns
rebates de presagio. Locustas de excruciantissimos toxicos, que me
estavam empeçonhando esperanças, enleios, arrobos e dulcissimas chimeras
de ainda ver florejarem os agros da patria, estrellarem-se estes céos
plumbeos e rasgarem-se os horisontes á onda fecundante d'este uberrimo
torrão. Doeu-me alma, choraram-me olhos, e comprehendi a angustia
virgiliana do hemestichio: _pulcia linquimus arva_. (_Muitos apoiados_.)
Pois que, sr. presidente? Cançariam maguas a quem se lhe antolhasse ter
de ainda ouvir n'esta casa voz de homem, de homem nado do ventre d'este
seculo, de homem que aqui entrou a verter no gasolifacio do templo do
eterno Christo da eterna liberdade, a drachma ou o talento, a mialha ou
o thesouro de sua dedicação, repito, sr. presidente, quem deixára de
estillar bagas de pranto, ao aportar em chão portuguez com o presagio de
que, alguma hora, havia de ouvir n'este _sancta-sanctorum_ das luzes,
blasphemias contra o luxo, que é a arteria, a órta do corpo industrial?
Quem quizera, por tal preço, dizer ás nações cultas: «eu sou d'aquelle
céo, nasci n'aquelle jardim de magas, onde Camões poetou glorias para
invejas do mundo? Sou da terra dos laranjaes onde suspirou Bernardim?
Sou da raça dos bravos que perpetuavam Aljubarrota, Badajoz, Valverde?
(_Apoiados prolongados_.) Na minha terra... (quem quererá já dizer!)
nasceram Gamas, nasceram Cabraes, e Castros, e Abuquerques, Nunes e
Regras? Quem sr. presidente?
(_Calisto pede a palavra_.)
_O orador_: Que é o luxo? Perguntae ao selvatico das florestas invias o
que é o seu _hamac_, e ao europeu o que é o seu almadraque de plumas,
tão crato e flacido ás evoluções corporeas. Perguntae ás bellas europeas
que lhes faz a grinalda de brilhantes, e ás bellas da Florida que prazer
lhes insinuam os vitreos adornos de variegadas côres. Oh! o luxo! o
luxo, senhores, é marco miliario de civilisação, a pomba que se volita
da arca, e se vae espanejando de azas por céos e terras além, recobrada
dos pavores primeiros, e saltitando de frança em frança. Oh! que
rejubilos de coração para quem fadado lhe foi de cima o entender e amar,
que o comprehender é amar, na phrase incisiva e galharda de Victor Hugo!
Sr. presidente! O coração da França, o encephalo, o grande nervo da
França é o luxo. E eu estive na França, sr. presidente, fui lá para me
reverberarem nos cristaes d'alma os lumes d'aquella perla d'Offir! Ai! a
França! Quando nos entreluzem os zimborios da moderna Babylonia, «_a
esperança remonta-se-nos em rasgado vôo para tudo mais vasto, mais
copioso, mais opulento, a espirar vida e bem para o alto, para o largo e
de muita benção, a branquear-nos a casinha da serra, a florir-nos o
pomar da veiga, a dar-nos canções e alegrias no artifice_.» [11]
O luxo, sr. presidente, é o espantalho dos animos sandios e cainhos.
_O deputado Calisto_: Seja pelo amor de Deus!
_O orador_: Pois seja, e muito que lhe preste ao collega, que mister se
lhe faz perdão de Deus pelas blasphemias economicas que ejaculou, sem
dar de olhos na civilisaçao, matrona prestimosa, que toda se desentranha
em blandicias e florinhas de viço e olor para opulentos e desremediados.
_O deputado Calisto_: Isso que diz em vernaculo?
_O orador_: Que me não falle á mão, se lhe sobranceio o intellecto.
Affigura-se-me, sr. presidente, que tenho pela frente sombra, e sombra
de que não ha temermo-n'os. Não sei, á bofé, com quem me esgrimo.
Propugnar por artes, pôr peito a defender industrias, ruir os cancêlos
das fabricas, bafejar incentivos á imaginativa do artifice, emfim e
derradeiramente, encarecer a utilidade do luxo, isto me está assetteando
o animo temeroso de desfechar injuria ao progresso, á idéa, ao _fiat_, á
humanidade! Para que me estou aqui afadigando e derramando, sr.
presidente se só mumias podem sair-me com esgares, de encontro ao
civilisador principio? (_Muitos apoiados_.)
Corre-me obrigação de silencio. Já de contricto me recolho, e da
offensa, á luz me penitencío; que eu me estive a espancar trevas que, em
que pese a pávidos agoireiros, já não hão de espessar-se em derredor do
sol esplendorosissimo.
_E, pois, antevejo que não ha mais dizer, sem entibiar-me a nota de
repetições, aqui ponho fecho_.[12]
_O orador foi comprimentado_.
O _presidente_: Tem a palavra o nobre deputado Calisto Eloy de Silos de
Benevides de Barbuda.
--Sr. presidente!--disse Calisto--Eu entendi quasi nada, porque o sr.
deputado dr. Liborio não fallou portuguez de gente (_riso nas
galerias_.) As laranjas, espremidas de mais, dão sumo azedo, que corta a
lingua. O sr. deputado fez do seu idioma laranja azeda. Se a linguagem
portugueza fosse aquillo que eu acabo de ouvir, devia de estar no
vocabulario da lingua bunda. Parece me que os obreiros da torre de
Babel, quando Deus os puniu do atrevimento impio, fallaram d'aquelle
feitio! (_Ordem_! _ordem_!)
O _orador_: Ordem, srs. deputados, peço eu para a lingua portugueza!
Peço-a em nome dos illustres finados Luiz de Sousa, Barros, Couto, e
quantos, no dia do juizo, se hão de filar á perna do sr. dr. Liborio.
O _presidente_: Peço ao illustre deputado que se abstenha de usar
phrases não parlamentares.
O _orador_: Tomo a liberdade de perguntar a v. ex.^a se as locuções
repolhudas do illustre collega são parlamentares; e, se o são, peço
ainda a mercê de se me dizer onde se estudam aquellas farfalhices.
(Vozes: _Ordem_! _ordem_!)
O _orador_: Quando aquelle senhor me chamou _sandio_, não foi violada a
ordem? (_Apoiados_). Ora pois: eu não quero desordens. Vou pacificamente
responder ao sr. deputado, como souber e podér. Estou a desconfiar que a
minha linguagem secca e desornada raspará nos ouvidos da camara, que
ainda agora se deleitou com a rethorica florida do sr. deputado do
Porto. Sou homem das serras. Creei-me por lá no tracto facil e chão dos
velhos escriptores: aprendi coisa de nada, ou pouquissimo. A mim,
todavia, me quer parecer que o fallar gente palavras do uso commum é
coisa util para nos entendermos todos aqui, e para que o paiz nos
entenda. Do menospreço d'esta utilidade resulta não poder eu
aperceber-me de razões para cabalmente responder aos argumentos do
discreteador mancebo. Percebi, a longes, pouquinhas idéas; porém,
querendo Deus, hei de, se me ajudar a paciencia com que estudei o idioma
de Thucydides, decifrar os dizeres de s. ex.^a no «_Diario das
Camaras_.» (_Riso_).
O illustre deputado quer que o luxo indique a riqueza das nações. Isto é
o que eu entendi do seu arrasoamento. Em França viu s. ex.^a mosquitos
por cordas. Pois, sr. presidente, eu li que, em França, onde o luxo é
maior, ahi é menor, em proporção, o numero dos individuos ricos (Vozes:
_apoiado_!) Este caso, se é verdadeiro, corta pela haste as flores todas
dos jardins oratorios do sr. dr. Liborio. Que mais disse s. ex.^a?
Faça-me a graça de m'o achanar na linguagem caseira com que o diria á
sua familia em _pratica como do lar_, consoante phrase a D. Francisco
Manuel de Mello na _Carta de Guia_.
O _dr. Liborio de Meirelles_: Não velei as armas do raciocinio para me
ir á liça da absurdeza. Melhores fadas me fadaram; e não me estou aqui
sabbatinando como em pleitos de bancos escolares. (Vozes: _Muito bem_.)
O _orador_: Muito bem o que?... Vae-me parecendo historia isto, sr.
presidente!... Eu queria-me entender com o sr. deputado, afim de
tirarmos algum proveito d'este debate; mas s. ex.^a, pelos modos por me
vêr assim minguado de affeites poeticos, acoima-me de absurdidade, e
despreza-me!... Valha-me Deus! Se o sr. dr. Liborio me não lançasse da
sua presença com tamanho desamor, havia de perguntar-lhe por que foram
Athenas e Roma bem morigeradas quando pobres, e corrompidas quando ricas
e luxuosas? Havia de perguntar-lhe que artes e sciencias progrediram
entre os sybaritas e lydios, povos que a mais elevado gráo de luxo
subiram? Havia da perguntar-lhe por que foi que os persas acaudilhados
por Ciro cortados de vida aspera e privada do necessario, subjugaram as
nações opulentas? Havia de perguntar-lhe porque foram os persas, logo
que se deram ás delicias do luxo, vencidos pelos lacedemonios?
A suprema verdade, sr. presidente, a verdade que os arrebiques da
rhetorica não seduzem, é que á medida que os imperios antigos se
locupletavam, o luxo ia de foz em fóra, e os costumes a destragarem-se
gradualmente, e o pulso da independencia a quebrantar-se, e os cimentos
das nações a estremecerem. Depois, era o cair do Egypto, da Persia, da
Grecia e Roma.
Até aqui a historia, sr. presidente; d'aqui em diante o sr. dr. Liborio
de Meirelles, o moço poeta, que foi a França, e achou desmentidos
Xenophonte e Thucidydes, Livio e Tacito, Plutarcho e Flavio.
O sr. dr., a meu juizo, é sujeito de grande imaginativa. Bonita coisa é
idear fabulações em academia de poetas; porém, n'esta casa, onde a nação
nos manda depurar a verdade dos fallaciosos ornatos com que a mentira se
arrea, mister é que sejamos sinceros. Já o insigne author dos _Apologos
dialogaes_ disse que a _imaginação era curral do conselho, onde, por não
ter portas, todo o animal tinha entrada_. Bom é tambem que os moços
muito imaginativos senão pavoneem até ao philaucioso sobrecenho de
passarem alvará de sandeus á gente que raciocina mais porque imagina
menos. É permittido aos versistas poetarem em prosa; mas as liberdades
poeticas não ajustam bem nos debates circumspectos da res publica.
Vou concluir, sr. presidente, votando contra a proposta do illustre
collega, que propoz a reducção dos direitos aduaneiros das sedas, e
pedindo ao sr. dr. Liborio, que, se outra vez me der a honra de imbicar
com este pobre homem lá das montanhas da raia, haja por bem de se
expressar em linguagem correntia. Não sou homem de salvas e rodeios:
digo as coisas á moda velha. Quero-me portuguez com os do sujeito, verbo
e caso no seu competente logar. E, se assim não fôr, ir-me-hei com
aquellas palavras que ouviu Arsenio: _Fuje, quíesce, et tace_; «foge,
socega, e não falles.»
Sentou-se Calisto Eloy. Alguns deputados anciãos do partido liberal
foram cumprimental-o; e outros, que se pejaram de imitar os velhos,
encararam no rustico provinciano com cortezia e tal qual veneração.
Calisto Eloy ganhára consideração na camara e no paiz.
Os deputados governamentaes acercaram-se d'elle, convidando-o em termos
delicados a aceitar, no banquete do progresso, o logar que a sua
intelligencia reclamava. Os deputados opposicionistas conjuravam-no a
não levantar mão de sobre os projectos depredadores com que a facção
governamental andava cavando novas voragens ao paiz.
O morgado da Agra respondia que estava descontente de gregos e troyanos,
e acrescentava:
--Não sei, por ora, de qual dos lados da camara se falla peor a lingua
patria. Tenho ouvido os quinhentistas á la moda, e os galliparlas. Todos
ressabem á hervilhaca; uns estão gafados de francezias, outros tresandam
nos seus dizeres o bafio que os bons seiscentistas regeitaram. Carecem
de cunho nacional estes homens. O máo portuguez principia a sel-o, desde
que mareia a pureza de sua lingua. Dêem-me portuguezes de lingua, e eu
me bandearei com elles, como com portuguezes de coração. Com aquelle dr.
Liborio do Porto nem para o céo. Tenho medo que Deus o não entenda, e
nos ponha ambos fóra de cambulhada.


X
*O coração do homem*

Entremos no coração de Calisto Eloy.
Cuidava o leitor que não tinhamos que entender com aquella entranha do
homem? Estou que a julgaram inviolavel ás suspeitas da historia em acto
de tanto alcance na biographia d'este personagem!
Já se disse que orçava pelos quarenta e quatro o morgado. N'aquella
edade, se ha fibras virginaes no coração, eram as d'elle.
Casára com sua prima Theodora, menina estimabilissima por virtudes, mas
mais feia do que pede a razão que seja uma senhora honesta. A noiva
deixou-se ir pela mão do pae á casa do esposo. Não ia alegre nem triste.
Tanto se lhe dava casar com o primo Calisto como com o primo Leonardo.
Logo que o pae lhe consentiu que levasse para Caçarelhos umas tres
duzias de gallinhas e parrecos, que ella creara, não lhe ficou na casa
natal coisa para sérias saudades.
Encontrou marido ao pintar. Coraram ambos ao mesmo tempo, quando o
bulicio das festas nupciaes se aquietou e a mãe do noivo lhes disse:
«Meninos, cada môcho a seu soito» phrase amenissima que em pouco e
depressa exprime a muita poesia de toda aquella família.
You have read 1 text from Portuguese literature.
Next - A Queda d'um Anjo: Romance - 04
  • Parts
  • A Queda d'um Anjo: Romance - 01
    Total number of words is 4390
    Total number of unique words is 1864
    32.8 of words are in the 2000 most common words
    44.6 of words are in the 5000 most common words
    52.7 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Queda d'um Anjo: Romance - 02
    Total number of words is 4527
    Total number of unique words is 1861
    32.1 of words are in the 2000 most common words
    45.4 of words are in the 5000 most common words
    51.5 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Queda d'um Anjo: Romance - 03
    Total number of words is 4627
    Total number of unique words is 1885
    30.8 of words are in the 2000 most common words
    42.4 of words are in the 5000 most common words
    49.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Queda d'um Anjo: Romance - 04
    Total number of words is 4570
    Total number of unique words is 1796
    34.2 of words are in the 2000 most common words
    48.2 of words are in the 5000 most common words
    54.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Queda d'um Anjo: Romance - 05
    Total number of words is 4566
    Total number of unique words is 1953
    32.7 of words are in the 2000 most common words
    44.6 of words are in the 5000 most common words
    51.3 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Queda d'um Anjo: Romance - 06
    Total number of words is 4568
    Total number of unique words is 1873
    30.2 of words are in the 2000 most common words
    43.9 of words are in the 5000 most common words
    50.1 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Queda d'um Anjo: Romance - 07
    Total number of words is 4684
    Total number of unique words is 1852
    34.7 of words are in the 2000 most common words
    48.5 of words are in the 5000 most common words
    55.8 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Queda d'um Anjo: Romance - 08
    Total number of words is 4543
    Total number of unique words is 1842
    34.5 of words are in the 2000 most common words
    47.8 of words are in the 5000 most common words
    54.6 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Queda d'um Anjo: Romance - 09
    Total number of words is 4759
    Total number of unique words is 1671
    38.0 of words are in the 2000 most common words
    50.6 of words are in the 5000 most common words
    57.9 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Queda d'um Anjo: Romance - 10
    Total number of words is 4532
    Total number of unique words is 1758
    33.8 of words are in the 2000 most common words
    47.8 of words are in the 5000 most common words
    55.2 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.
  • A Queda d'um Anjo: Romance - 11
    Total number of words is 3741
    Total number of unique words is 1493
    37.0 of words are in the 2000 most common words
    48.6 of words are in the 5000 most common words
    55.4 of words are in the 8000 most common words
    Each bar represents the percentage of words per 1000 most common words.