A Queda d'um Anjo: Romance - 01

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A QUEDA D'UM ANJO
ROMANCE
POR
CAMILLO CASTELLO BRANCO

LISBOA
LIVRARIA DE CAMPOS JUNIOR--EDITOR
77--Rua Augusta--81
1866


Imprensa de J. G. de Sousa Neves--Rua do Caldeira, 17


*DEDICATORIA*

ILL.^{MO} E EX.^{MO} SR. ANTONIO RODRIGUES SAMPAIO

Meu amigo.

Volto a offerecer-lhe uma das minhas bagatelas. Chamo assim, para me
fingir modesto, bagatelas a umas coisas que eu reputo no maximo valor.
Se não fossem ellas, naturalmente eu não chegaria a grangear a estima de
V. Ex.^a, que m'as tem lido, e alguma vez louvado. Já V. Ex.^a, antes de
me conhecer, quiz encravar a roda do meu infortunio, roda com que eu
estou sempre brincando como as creanças com os seus arcos. Que tinha eu
feito para commover a bemquerença do meu prestante amigo? Tinha feito
uns livros futilissimos, á imitação d'este que lhe offereço.
Não é esta boa opportunidade de eu vir com a minha oblação de pobre a V.
Ex.^a Lembra-me a sentença do nosso Diogo de Teive:
_Donat cum egenus diviti
Retia videtur tendere_.
Os praguentos hão de querer ver aquellas _rêdes_, por que não sabem que
V. Ex.^a já me constituiu, ha muito, no dever de eterna e profunda
gratidão.
Lessa da Palmeira 27 de setembro de 1865.
CAMILLO CASTELLO BRANCO.


I
*O heroe do conto*

Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de
Freimas, tem hoje quarenta e nove annos, por ter nascido em 1815, na
aldeia de Caçarelhos, termo de Miranda.
Seu pae, tambem Calisto, era cavalleiro fidalgo com filhamento, e decimo
sexto varão dos Barbudas da Agra. Sua mãe, D. Basilissa Escolastica,
procedia dos Silos, altas dignidades da egreja, commendatarios, sangue
limpo, já bom sangue no tempo do senhor rei D. Affonso I, fundador de
Miranda.
Fez seus estudos de latinidade no seminario bracharense o filho unico do
morgado da Agra de Freimas, destinando-se a doutoramento _in utroque
jure_. Porém, como quer que o pae lhe fallecesse, e a mãe contrariasse a
projectada formatura, em razão de ficar sosinha no solar de Caçarelhos,
Calisto, como bom filho, renunciou á carreira das lettras, deu-se ao
governo da casa algum tanto, e muito á leitura da copiosa livraria,
parte de seus avós paternos, e a maior dos doutores em canones, conegos,
desembargadores do ecclesiastico, cathedraticos, chantres, arcediagos e
bispos, parentella illustrissima de sua mãe.
Casou o morgado, ao tocar pelos vinte annos, com sua segunda prima D.
Theodora Barbuda de Figueirôa, morgada de Travanca, senhora de raro
aviso, e muito apontada em amanho de casa, e ignorante mais que o
necessario para ter juizo.
Unidos os dois morgadios, ficou sendo a casa de Calisto a maior da
comarca; e, com o rodar de dez annos, prosperou a olho, tendo grande
parte n'este incremento a parcimonia a que o morgado circumscreveu seus
prazeres, e, por sobre isto, o genio cainho e apertado de D. Theodora.
_Remenda teu panno, chegar-te-ha ao anno_, dizia a morgada de Travanca;
e, afferrada ao seu adagio predilecto, remendava sempre, e sergia com
perfeição justamente admirada entre a familia, e fallada como exemplo na
área de quatro leguas, ou mais.
Em quanto ella recortava o fundilho ou apanhava a malha rôta da pinga, o
marido lia até noite velha, e adormecia sobre os in-folios, e acordava a
pedir contas á memoria das riquezas confiadas.
Os livros de Calisto Eloy eram chronicões, historias ecclesiasticas,
biographias de varões preclaros, corographias, legislação antiga,
foraes, memorias da academia real da historia portugueza, cathalogos de
reis, numismatica, genealogias, annaes, poemas de cunho velho, etc.
Respeito a idiomas estranhos, dos vivos conhecia o francez muito pela
rama; porém, o latim fallava-o como lingua propria, e interpretava
correntemente o grego.
Memoria prompta, e cultivada com aturado e indigesto estudo, não podia
sair-se com menos de um erudito em historia antiga, e repositorio de
noticias miudas sobre factos e pessoas de Portugal.
Consultavm-n'o os sabios transmontanos como juiz indeclinavel em
decifrar cipos e inscripções, em restabelecer épocas e successos
controvertidos por authores contradictorios.
Sobre castas e linhagens, coisa que elle tirasse a limpo, não dava péga
a duvida nenhuma. Ia elle desenterrar geração já sepultada ha setecentos
annos, e provar que, na era de 1201, D. Fuas Mendo casára com a filha de
um mesteiral, e D. Dorzia se havia sujado casando mofinamente com um
pagem da lança de seu irmão D. Payo Ramires.
Farpeados pela viperina lingua d'elle, os fidalgos provincianos
retaliavam quanto podiam a prosapia dos Benevides, propalando que
n'aquella familia se gerára um clerigo grande femieiro, beberrão e
lambaz, a quem o santo arcebispo D. Frei Bartholomeu dos Martyres, uma
vez, perguntára que nome havia; e, como quer que o padre respondesse
_Onofre de Benevides_, o arcebispo accudira dizendo: Melhor vos acertará
com o nome, segundo a vida que fazeis, quem vos chamará de _Bene bibis_
e _male vivis_.»[1] O remoque, talvez por ser de santo, era medianamente
engraçado e pouco para affligir; assim mesmo Calisto Eloy, á conta
d'esta injuria dos fidalgos comarcãos, tanto lhes esgravatou nas
gerações, que descobriu radicalmente serem quasi todas de má casta.
É superfluo dizer-se a qual doutrinação politica pendia o animo do
morgado da Agra de Freimas. Estava com a decisão das côrtes de Lamego.
Fizera-se n'ellas, e cuidava ter assistido, em 1145, áquelle congresso
mythologico, e ter conclamado com Gonçalo Mendes da Maya, o Lidador, e
com Lourenço Viegas, o Espadeiro: _Nos liberi summus, rex noster liber
est_.[2] Todavia, se assim fossem todos os doutrinarios politicos, a
gente apodrecia na mais refestelada paz, e supina ignorancia do
andamento da humanidade.
Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda queria que se venerasse o
passado, a moral antiga como o monumento antigo, as leis de João das
Regras e Martim d'Ocem, como o mosteiro da Batalha, as ordenações
manuelinas como o convento dos Jeronymos.
O mal que d'aqui surdia ao genero humano, a fallar verdade, era nenhum.
Este bom fidalgo, se lhe tirassem o sestro de esmiuçar desdouros nas
gerações das familias patriciatas, era inoffensiva creatura. D'este
senão, a causa foi um chamado _Livro-negro_, que herdára de seu tio avô
Marcos de Barbuda Tenazes de Lacerda Falcão, genealogico pavoroso, o
qual gastára sessenta dos oitenta annos vividos, a colligir borrões,
travessias, mancebias, adulterios, coitos damnados, e incestos de muitas
familias n'aquellas satanicas costaneiras, denominadas _Livro-negro das
linhagens de Portugal_.
Em summa, Calisto era legitimista quieto, calado, e incapaz de impecer a
roda do progresso, com tanto que elle não lhe entrasse em casa, nem o
quizesse levar comsigo.
Prova cabal de sua tolerancia foi elle acceitar em 1840 a presidencia
municipal de Miranda. Na primeira sessão camararia fallou de feitio e
geito, que os ouvintes cuidavam estar escutando um alcaide do seculo xv
levantado do seu jazigo da cathedral. Queria elle que se restaurassem as
leis do foral dado a Miranda pelo monarcha fundador. Este requerimento
gelou de espanto os vereadores; d'estes, os que poderam degelar-se,
riram na cara do seu presidente, e emendaram a galhofa dizendo que a
humanidade havia já caminhado sete seculos depois que Miranda tivera
foral.
--Pois se caminhou, replicou o presidente, não caminhou direita. Os
homens são sempre os mesmos e quejandos; as leis devem ser sempre as
mesmas.
--Mas... retorquiu a opposição illustrada, o regimen municipal expirou
em 1211, sr. presidente! V. ex.^a não ignora que ha hoje um codigo de
leis communs de todo o territorio portuguez, e que desde Affonso II se
estatuiram leis geraes. V. ex.^a de certo leu isto...
--Li, atalhou Calisto de Barbuda, mas reprovo!
--Pois seria util e racional que v. ex.^a approvasse.
--Util a quem? perguntou o presidente.
--Ao municipio, responderam.
--Approvem os srs. vereadores, e façam obra por essas leis, que eu
despeço-me d'isto. Tenho o governo de minha casa, onde sou rei e
govérno, segundo os foraes da antiga honra portugueza.
Disse; saiu; e nunca mais voltou á camara.


II
*Dois candidatos*

Desde o qual incidente, o morgado, convicto da podridão dos vereadores
em particular, e da humanidade em geral, prometteu a onze retratos, que
tinha de onze avós, pintados indignamente, nunca mais tocar o cancro
social com suas mãos impollutas.
N'este proposito, nem ao menos consentiu que o vigario lhe mandasse o
_Periodico dos Pobres_ do Porto de que era assignante emparceirado com
mais quatro reitores limitrophes, e o mestre escola e o boticario.
Um dia, porém, quando elle saia da festividade de S. Sebastião, cujo
mordomo era, deteve-se no adro, onde o rodearam os mais graudos
lavradores da sua freguezia e das visinhas. N'outro grupo, fallava-se do
sermão, e da constancia do santo capitão das guardas do barbaro
Diocleciano, e da desmoralisação do imperio.
Estas puchadas reflexões era o boticario que as expendia, coadjuvado
pelo mestre de primeiras lettras, sujeito que sabia mais historia romana
do que é permittido a um professor da preciosa e capitalissima sciencia
de ler, contar e escrever, pelo que o sabio vinha a grangear para a
humanidade a sciencia, e para elle nove vintens e meio por dia. E comia
o sabio estes nove vintens e meio quotidianos, e ensinava os rapazes, e
sobejava-lhe tempo para ler historia! Podéra!... Os governos davam-lhe
férias grandes ao estomago, em proveito do espirito. Se elle andasse bem
nutrido e succado de tripa, não aprendia nem ensinava coisa de monta.
Que a pobresa é o estimulo das maiores façanhas da intelligencia.
_Paupertas impulit audax_[3]. Isto que o Horacio faminto dizia de si,
accomodam-no os regedores da coisa publica aos professores de primeiras
lettras; porém, outros muitos versos do Horacio farto, esses tomam-os
elles para seu uso.
Estava, pois, o mestre-escola, de parceria com o boticario, a castigar a
perversidade dos imperadores romanos, por amor do martyr S. Sebastião,
que, segunda vez, acabava de ser fréchado no panegyrico. N'este comenos,
abeirou-se d'elles Calisto Eloy, e para logo se callaram as duas
capacidades, em referencia ao Salomão da terra.
--Que dizem vocemecês?--perguntou Calisto benignamente. Continuem...
Parece que fallavam do santo.
--É verdade, sr. morgado--accudiu o boticario, ajustando os collarinhos
percucientes ao lóbulo das orelhas, escarlates do atrito da
gomma.--Fallavamos na malvadez dos imperadores pagãos.
--Sim!--disse Calisto, com proeminencia declamatoria,--sim! Horrorosos
tempos aquelles foram! Mas os tempos actuaes não se differençam tanto
dos antigos, que possamos, em consciencia e sciencia, encarecer o
presente e praguejar o passado. Diocleciano era pagão, cego á luz da
graça: os crimes d'elle hão de ser contrapesados, e descontados, na
balança divina, com a ignorancia do delinquente. Ai, porém, dos que
prevaricaram fechando olhos á luz da notoria verdade, afim de se
fingirem cegos! Ai dos impios, cujas entranhas estão afistuladas de
herpes! No grande dia, funestissima ha de ser a sentença d'elles, novos
Caligulas, novos Tiberios, e Dioclecianos novos!
Relanceou o pharmaceutico uma olhadella esguelhada ao professor, o qual,
abanando tres vezes e de compasso a cabeça, dava assim a perceber que
abundava na admiração do seu amigo e consocio erudito em historia
romana.
Obrigado ás orelhas do auditorio attento, Calisto, em toada de Ezequiel,
continuou:
--Portugal está alagado pela onda da corrupção, que subverteu a Roma
imperial! Os costumes de nossos maiores são mettidos a riso! As leis
antigas, que eram o baluarte das antigas virtudes, dizem os sycophantas
modernos, que já não servem á humanidade, a qual, em consequencia de ter
mais sete seculos, se emancipou da tutela das leis. (Allusão bervada aos
vereadores de Miranda, que discreparam do intento restaurador do foral
dado por D. Affonso. Vinham a ser sycophantas os collegas
municipalenses.) _Credite, posteri_!--exclamou Calisto Eloy com enfase,
nobilitando a postura.
O latim não lh'o entenderam, salvo o mestre-escola, que antes de ser
sargento de milicias, havia sido donato no convento dominicano de
Villa-Real.
E repetiu: _Credite, posteri_!
N'esta occasião, saiu da egreja a sr.^a D. Theodora Figueirôa, e disse
ao esposo:
--Vem d'ahi, Calisto. Vamos jantar, que é uma hora, e já lá vae o padre
prégador para casa.
Enguliu o morgado tres phrases de polpa, que lhe inflavam os bocios, e
foi ao jantar, sacrificando-se á regularidade das suas horas
inalteraveis de repasto.
Ficaram o boticario e o professor de primeiras lettras, e mais os
lavradores, ruminando as palavras do fidalgo, e glosando-as de notas
illustrativas, ao alcance das capacidades.
Um dos mais graves e anciãos lavradores, regedor, ensaiador e ponto nos
entremezes do entrudo exclamou:
--Aquillo é que dava um deputado ás direitas! Um homem assim, se fosse a
Lisboa fallar ao rei, as contribuições haviam de acabar!
--Isso não, perdoará vocemecê, tio José do Cruzeiro,--observou o
mestre-escola--os impostos é necessario pagal-os. Sem impostos, não
haveria rei nem professores de instrucção primaria (observem a modestia
da gradação!) nem tropa, nem anatomia nacional.
O mestre-escola havia lido, repetidas vezes no _Periodico dos Pobres_,
as palavras _autonomia nacional_. Falhou-lhe d'esta feita a memoria,
lapso que não destoou em nenhumas orelhas, exceptuadas as do boticario,
que resmungou:
--Anatomia nacional!
--Que é?!--perguntou ao pharmaceutico um estudante de clerigo.
--Parece-me que é asneira!--respondeu o outro com certa indecisão.
Proseguiu, concluindo, o mestre-escola:
--E, portanto os tributos, tio José do Cruzeiro, são necessarios ao
estado como a agua aos milhos. Ora, agora, que ha muito quem bebe o suor
do povo, isso ha; e aquelles, que deviam ser bem pagos, são os que menos
comem da fazenda nacional. Aqui estou eu, que sou um funccionario
indispensavel á patria, e receberia cento e noventa réis por dia, se não
trouxesse rebatidos seis recibos a trinta e seis por cento, de modo que
venho a receber seis e cinco! Que paiz!... O senhor morgado disse bem:
estamos chegados aos tempos dos Dioclecianos e Caligulas!
O auditorio já vacillava em decidir qual dos dois era mais talhado para
ir fallar ao rei a Lisboa, se Calisto, se o mestre escola.


III
*O demonio parlamentar descobre o anjo*

Fermentou na mente dos principaes lavradores e parochos das freguezias
do circulo eleitoral a idéa de levar ao parlamento o morgado da Agra de
Freimas.
Os deputados eleitos até áquelle anno no circulo de Calisto Eloy, eram
coisas que os constituintes realmente não tinham enviado ao congresso
legislativo. Pela maior parte, os representantes dos mirandenses tinham
sido uns rapazes bem fallantes, areopagitas do café Marrare, gente
conhecida pela figura desde o botequim até S. Carlos, e affeita a beber
na Castalia, quando, para encher a veia, não preferia antes beber da
garrafeira do Matta, ou outro que tal ecónomo dos apollineos dons.
Em geral, aquella mocidade esperançosa, eleita por Miranda e outros
sertões lusitanos, não sabia topographicamente em que parte demoravam os
povos seus comittentes, nem entendia que os aborigenes das serranias
tivessem mais necessidades que fazerem-se representar, obrigados pelo
regimen da constituição. Se algum influente eleitoral, prelibando as
delicias do habito de Christo, obrigára a urna e o senso commum a gemer
nos apertos do doloroso parto do paralta lisboeta, o tal influente
considerava-se idóneo para escrever ao deputado incumbindo-lhe trabalhar
na nomeação d'um vigario chamôrro, ou outra coisa, que foi denominação
de bando politico, em tempo que a politica não sabia sequer dar-se nomes
decentes. Pois o deputado não respondia á carta do influente, nem o
requerente sabia onde procural-o, fóra do Marrare.
Por muitos factos d'esta natureza conspiraram os influentes do circulo
de Miranda contra os delegados do governo; e a idéa de eleger o morgado
foi recebida entusiasticamente por todos aquelles que o ouviram fallar
no adro da egreja, e por quantos houveram noticias da sua parlenda.
O partido, que o mestre-escola ganhára de eloquente assalto, cedeu ao
imperio das rasoaveis conveniencias, e conglobou-se na maioria. A
verbosidade, porém, do professor não ficou despremiada, sendo nomeado
secretario da junta de parochia.
Resistiu Calisto de Barbuda tenazmente ás solicitações dos lavradores,
que o procuraram com o mestre-escola á frente, facto que muito honra
este desinteresseiro e reportado funccionario. N'este encontro, o
professor excedeu o juizo avantajado que elle propriamente fazia de sua
vocação oratoria. Mostrou as fauces do abysmo escancaradas para tragarem
Portugal, se os sabios e virtuosos não acudissem a salvar a patria
moribunda. Calisto Eloy, enternecido até ás lagrimas pela sorte da terra
de D. João I, voltou-se para a esposa, e disse, como o agricultor
Cincinnatus:
--Aceito o jugo! Assás receio, mulher, que os nossos campos sejam mal
cultivados este anno...
Estavam proximas as eleições.
A authoridade, assim que soube da resolução do morgado da Agra, preveniu
o governo da inutilidade da lucta. Não obstante, o ministro do reino
redobrou instancias e promessas, no intuito de vingar a candidatura de
um poeta de Lisboa, mancebo de muitas promessas ao futuro, que tinha
escripto revistas de espectaculos, e recitava versos d'elle ao piano,
cuja falta ou demasia de syllabas a bulha dos sonoros martellos
disfarçava. Redarguiu o administrador do concelho ao governador civil,
que pedia sua demissão para não soffrer a inevitavel e desairosa
derrota.
Quiz assim mesmo o governo alliciar no circulo algum proprietario, que
contraminasse a influencia do candidato legitimista, fazendo-se eleger.
Alguns lavradores, menos afferrados á candidatura de Calisto, lembraram
á authoridade o professor de instrucção primaria, estropeando phrases
dos discursos d'elle, proferidos na botica. O administrador riu-se, e
mandou-os bugiar, como parvoinhos que eram.
Por derradeiro, o governador civil fez saber ao ministerio que os povos
de Vimioso, Alcanissas e Miranda se haviam levantado com selvagem
independencia e tintam fugido com a urna para os desfiladeiros das suas
serras. Pelo conseguinte, não pôde ser proposto o poeta, que beliscado
na sua vaidade assanhou-se contra o governo, escrevendo umas feras
objurgatorias, as quaes, se tivessem grammatica á proporção do fel, o
governo havia de pôr as mãos na cabeça e demittir-se.
Á excepção de uma lista, o morgado da Agra de Freimas teve-as todas. A
que não tinha o nome sympathico aos eleitores, votava em Braz Lobato,
professor de instrucção primaria, secretario da junta de parochia, e
ex-sargento das milicias de Mirandella. Parece que votára em si o
mestre-escola. A final, maculou a alvura do nobilissimo desprendimento
com que perorara em pró da eleição de Calisto! Fragilidade humana!
Principiou, desde logo, o morgado eleito a refrescar a memoria com as
suas leituras de historia grega e romana; era isto entroixar sciencia e
enfreixar flores para o parlamento. Depois, releu a legislação dos bons
tempos de Portugal, afim de restaurar os costumes desbaratados, fazendo
remoçar as leis, que haviam sido o tabernaculo da moral humana guardado
pelo temor de Deus. Tosquenejou muitas noites sobre os bacamartes
pulvéreos; e, desde que a manhã raiava até horas de almoço, ia á margem
do Douro, que lhe lambia a ourela da quinta, declamar, como Demosthenes
nas ribas maritimas, ao stridor de uma açude e das rodas de duas
azenhas. Os moleiros, que o viam bracejar, e lhe ouviam o vozeamento,
benziam-se, pensando que o sabio treslêra, ou coisa má lhe entrara no
corpo. A sr.^a D. Theodora Figueirôa, vendo o marido assim tresnoitado,
seguia-o ás vezes, de madrugada, espreitava-o de um cabeço sobranceiro
ao rio, e benzia-se tambem, dizendo: «Dão-me com o homem doido!»
Chegou o tempo de partir para a capital.
O deputado mandou adiante por almocreve duas cargas de livros, nenhum
dos quaes tinha menos de cento e cincoenta annos.
Seguia-se, na conducta dos machos portadores, uma carga de persunto e
orelheira, substancia quotidiana da alimentação de Calisto Eloy.
Depois, outra carga de ancoretas de vinho velho, e na entrecarga uma
garrafeira com duas duzias de garrafas de vinho, que competia
antiguidade com a fundação da companhia.
A guarda-roupa do procurador dos povos era modesta, salvo o chapéo
armado, calção de tafetá e espadim, com que elle, na qualidade de
fidalgo cavalleiro, costumava contribuir para a magestade das procissões
de Miranda, pegando ao pallio.
A pessoa de Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda foi em liteira,
e chegou a Lisboa ao decimo quinto dia de jornada, trabalhada de
perigos, superiores á descripção de que somos capaz.
De proposito, saltamos por cima dos pormenores da partida, para não
descrever o quadro lastimoso do apartamento de Calisto e Theodora.
O apartamento de Theodora e Calisto era titulo para dois capitulos de
lagrimas.


IV
*Asneiras da erudição*

Por fins de janeiro, chegou Benevides de Barbuda a Lisboa, e alugou casa
no bairro de Alfama, por lhe terem dito que, n'aquella porção da Lisboa
antiga, a cada esquina havia um monumento á espera de archeologo
competente.
Ao cabo de tres dias, Calisto mudou-se para rua mais limpa, suppondo que
os lamaçaes de Alfama haviam tragado os monumentos, lamaçaes em que elle
desastradamente escorregára, e d'onde saíra mal-limpo, e assoviado por
marujos e collarejas, seus visinhos mais chegados. Mau agouro! A
primeira chimera de Calisto, seu tanto ou quanto scientifica,
atascara-se na lama d'aquella parte de Lisboa, que devia de ser a
_inclita Ulissea_ de Luiz de Camões!
O deputado, sem embargo de ir habitar o quarto andar de uma casa lavada
de ares e muito desafogada na rua da Procissão, quiz-lhe parecer que a
atmosphera da capital não cheirava bem.
Abriu um dos seus livros velhos, intitulado _Do sitio de Lisboa_ etc.
por Luiz Mendes de Vasconcellos, e leu:
«...E assim, de todo o territorio de Lisboa, parece que da terra, fontes
e rios, respiram suavissimos vapores, amigos da natureza humana; porque
é coisa certissima que a benignidade dos ares d'este sitio, não só é por
natureza deleitosa, pelo seu temperamento, mas de grandissimo proveito
para algumas doenças, etc...»
Calisto Eloy fechou o livro, e disse de si para comsigo, tomando uma vez
de rapé:
--O meu classico não podia mentir. Este mau cheiro é desconcerto da
minha membrana pituitaria.
E alcatroou segunda vez, as ventas com uma pitada desinfectante.
Pareceu-lhe tambem pesada e salôbra a agua.
Recorreu ao seu classico Luiz Mendes, no artigo _agua_, e leu que o
chafariz de El-Rei dava uma lympha gostosa e de suave quentura, a qual
limpava a garganta de toda a roquidão, e afinava as vozes, _e assim_,
dizia o classico, _não errará quem disser que ella é causa das boas
vozes que em Lisboa docemente ouvimos cantar; e tambem dos bons carões
que conservam as mulheres_.
Em quanto aos bons carões das mulheres, Calisto, que, de um relancear
honesto de olhos, observára os rostos pallidos e esgrouviados de algumas
senhoras de Lisboa, não podendo arguir de fallacia o dizer de Luiz
Mendes, attribuiu á degeneração dos costumes e raças o descarnado e
amarellido das caras; no tocante á suavidade das vozes, ficou indeciso,
não querendo desmentir o seiscentista, nem formar conceito por uns
grunhidos de cantaróla barbara com que os vendilhões pregoavam os
comestiveis.
Todavia, como a agua do chafariz de El-Rei aclarava o orgão vocal, e
Calisto, á força de berrar ao pé da açuda e azenhas, estava um tanto
rouco, mandou buscar um barril d'aquella salutifera agua, que o Mendes
de Vasconcellos compára á das fontes camenas. Bebeu á tripa fôrra o
deputado, e teve uma dôr de barriga precursora de febres quartãs.
Valeu-se ainda do seu classico, e por conta d'elle mandou buscar á
Pimenteira outro barril de agua, a qual, diz o citado author, _se busca
para os doentes de febres_.
O velho criado e enfermeiro, quando viu o seu amo encharcado e cada vez
peior, foi de moto proprio em cata do cirurgião, o qual deu o morgado
rijo e fero em quinze dias com algumas beberagens quinadas.
Desde então, Calisto Eloy não bebeu senão vinho, e melhorou da garganta
e do espirito, um tanto quebrantado, recitando, a cada garrafa que
abria, o proverbio da sagrada escriptura:--_Vinum bonum laetifical cor
hominis_.[4]
Não obstante, o descredito do seu classico deveras lhe doeu, mormente
pelo tom de mofa com que o cirurgião enxovalhou as cãs do honrado e
lusitanissimo escriptor Luiz Mendes.
Apenas convalescido, Calisto abria outro livro da mesma edade, escripto
por identico motivo, para averiguar se o author do _Sitio de Lisboa_
claudicára como patranheiro em materia de chafarizes.
O bacamarte consultado era a _Fundação, antiguidades e grandezas da
muito insigne cidade de Lisboa_, etc., escripto pelo capitão Luiz
Marinho de Azevedo.
--Cá está!--exclamou Barbuda em soliloquio--cá está explicada a minha
dôr de barriga! era destemperança do figado.
O deputado acabava de ler o seguinte periodo de Luiz Marinho:
«Encareceu Plinio muito a agua, que vinha a Roma da fonte Marcia, e
Vitruvio a das fontes Camenas, porque nasciam quentes e eram saborosas
no gosto, sendo por esta causa muito sadias e proveitosas para conservar
saude. E posto que (_sic_) Luiz Mendes de Vasconcellos queira que por
estas propriedades tenha a agua do charariz d'El-Rei as mesmas
qualidades; a experiencia mostra que, sendo suave no gosto, o não é nos
effeitos, porque lhe attribuem os medicos a destemperança do figado, que
muitas pessoas padecem, e de que procedem varias enfermidades.»
--Fie-se lá a gente!--monologou o deputado.--É preciso cuidado com os
classicos a respeito da agua de Lisboa.
E, proseguindo na leitura, encontrou confirmada a maravilha de se
afinarem as vozes com o uso da agua do chafariz d'El-Rei, por estes
termos:
«É causa das boas vozes dos musicos naturaes de Lisboa, ou que n'ella
moraram, que tanto lustram em sua real capella, e na da corte de
Madrid[5], conventos e egrejas cathedraes d'este reino e do de Castella:
excellencia que tambem se acha nas mulheres, cuja feminina voz enleva os
sentidos, como se experimenta ouvindo cantar as religiosas dos mosteiros
d'esta cidade, em que mais parece se ouvem córos de anjos que vozes
humanas.»
Á primeira vez que saiu, andou Calisto em demanda dos conventos de
freiras, e das festividades de cada um. Disseram-lhe, em face de um
repertorio, que a mais proxima festa era, no domingo immediato, em Santa
Joanna. Foi Calisto á festa para ouvir cantar as freiras. Não lhe
pareceu cantoria o que ouviu: eram tres narizes roufinhando destoantes.
Calisto saiu do templo, foi ao palratorio, chamou a madre-porteira, e
disse-lhe, com a sua candura de bom homem, que recommendasse ás senhoras
cantoras a agua do chafariz d'El-Rei. A madre ficou passada do
disparate, e voltou-lhe as costas.
Como quer que o morgado da Agra de Freimas não fosse homem que estudasse
as materias perfunctoriamente, quiz esquadrinhar a respeito de aguas
toda a substancia d'este importante elemento.
Decepções sobre decepções!
Quando morára na Alfama, observára elle que, n'aquelle bairro, as
mulheres eram sardentas, rôxo-terra, e crespas de pelle. Pois o classico
Marinho saía-lhe com este desmentido aos seus proprios olhos:
«Tem mais outra propriedade occulta a agua do chafariz (d'El-Rei) que é
conservar os rostos das mulheres, que com ella se lavam, em uma alvura
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